Título: 'Se não tiver criança não tem tráfico'
Autor: Luciana Garbin
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/07/2005, Metrópole, p. C1,4,5

Aliciamento cresce na periferia e em áreas do centro, porque garotos, pagos até com lanches ou roupas, despertam menos suspeitas

Começou na porta da escola. - Mano, você é bom, gostei da sua pessoa. Pode levar isso pra mim? Vai ter seu dinheiro.

John não recusou. O trabalho era entregar um brinquedo (revólver) na Favela da Lidiane, zona norte de São Paulo. Foi sua primeira missão no tráfico. Ele tinha 11 anos.

Caíque, de 12, vive no centro e tenta resistir.

- Uns falam: vende (a droga) que dou dinheiro. Falo que não e querem bater. Aí corro para a base comunitária (da PM).

Os dois meninos são exemplos de um crime em expansão em São Paulo: o aliciamento de crianças cada vez menores pelo tráfico. Na semana em que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 15 anos - a data oficial é quarta-feira -, as autoridades não sabem nem sequer quantas elas são. Mas por toda a periferia e em áreas da região central casos como o de John e Caíque são freqüentes. "Se não tiver criança, não tem tráfico", resume um traficante de 16 anos da zona norte.

Além de aviãozinho (entregador), elas hoje trabalham buscando marmitex e cigarros para traficantes, atuam como olheiros. Quanto mais novas, menos levantam suspeitas. E não há risco de serem levadas para a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), onde o limite mínimo de idade é 12 anos. "No tráfico, sempre tem de ficar um grupinho de crianças. Se vem a polícia e você não consegue correr, coloca arma na mão da criança e ela sai andando", diz o traficante.

Outra estratégia é deixar drogas e armas numa mochila e jogá-la nas costas de um "pivetinho". Alguns, já com uniforme escolar, sabem que têm de correr, se esconder e esperar que venham recolher a mercadoria.

As crianças do tráfico geralmente passam o dia brincando na rua ou em algum bar de frente para a biqueira, a boca-de-fumo, jogando fliperama. "Tem refrigerante e lanche de graça, pipa, bicicleta. Se precisa remédio, tem; roupa, tem", diz John.

Quando tudo dá certo, elas ganham dinheiro ou drogas. Se fizerem algo errado, como não perceber a chegada de policiais, apanham "para nunca mais esquecer". Há casos também de morte. "Já vi pivete morrer a tiro por bater em filho de traficante. Ou ratear (roubar) bicicleta. E ouvi muito conselho de chefe: 'Fica ligeiro com esses pivetinhos. Se precisar, mete bala. Não vou sujar a mão com pouca merda.'"

No centro, traficantes pagam crianças para vigiar droga escondida em bueiro e cano de sarjeta. "Eles pagam churrasquinho, mas, se alguém roubar a droga, batem na gente", diz Caíque. "Um colega meu apanhou no corpo todinho. O menino passou e levou (a maconha) sem ele ver."

Às vezes, os próprios adolescentes se chocam com o tamanho das crianças. "Estes dias veio um menino de bicicleta: 'dá aí uma farinha (cocaína)'. Tinha uns 10 anos. Falei: da minha mão, você não vai levar", diz Jéssica, de 15 anos.

Alguns querem entrar, mas nem cálculos sabem fazer. "Um de 11 anos perguntou: aí, quanto de lucro vou ganhar de olheiro? E me chama para fazer contas", diz Jessica. E o que ela, que cresceu no negócio, acha disso tudo? "É muita convivência. Você vê o adulto falando e fazendo e quer falar e fazer também."