Título: A imagem heróica de Mao é o que sustenta os atuais líderes
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Fonte: O Estado de São Paulo, 10/07/2005, Internacional, p. A20

Sem ela, se abriria um buraco negro sob os pés do Partido Comunista

Não faz muito, escrevi uma resenha entusiasmada de Mao: The Untold History (Mao: a História que Não Foi Contada), a nova biografia escrita por Jung Chang e Jon Halliday. O número de junho da revista Far East Economic Review, que publicou minha resenha, foi prontamente proibido na China. O mesmo destino coube a outras publicações com resenhas parecidas, e uma entrevista da BBC com a própria Jung Chang - ela escreveu o best seller mundial Wild Swans (Cisnes Selvagens) - foi barrada. Mao Tsé-tung morreu em 1976. Por que então, quase 30 anos depois e numa China onde, conforme dizem, a liberdade de expressão estaria aumentando, atacar o presidente continua tabu?

A biografia de Chang e Halliday é um ato de demolição em que nada é sagrado. Chang diz de Mao: "Ele foi tão perverso quanto Hitler ou Stalin e causou tanto dano à humanidade quanto estes."

Os autores responsabilizam Mao por mais de 70 milhões de mortes em tempo de paz, incluindo pelo menos 37 milhões na grande fome de 1959-1961 decorrente de políticas econômicas estúpidas do antigo líder.

Isso não é novidade na China. Se 70 milhões de pessoas morreram antes do tempo e muitos outros milhões sofreram durante a Revolução Cultural, deve haver centenas de milhões de chineses que conhecem os estragos de Mao.

Em 1981, aliás, o Partido Comunista chinês publicou um julgamento oficial atribuindo a Mao a principal responsabilidade pela tragédia sem paralelo da Revolução Cultural, e admitindo, também, que a partir do fim dos anos 50, o presidente cometeu erros e fez julgamentos equivocados.

Mas o partido conclui que Mao continuou sendo um grande revolucionário marxista. A Revolução Cultural continua, portanto, fora do alcance de uma pesquisa séria na China.

E aqui descobrimos a extrema inviolabilidade de Mao, cujo imenso retrato continua fitando o centro sagrado da China, a Praça Tiananmen (Praça da Paz Celestial).

Uma pesquisa adequada na China revelaria o que já é bastante conhecido por especialistas chineses do Ocidente, e fica esclarecido na biografia de Chang e Halliday: Mao não só apertou o botão para iniciar a Revolução Cultural, como ele controlou de perto alguns de seus piores atos. E assim como Stalin, Mao queria saber sempre os detalhes mais escabrosos da perseguição, fosse de seus velhos colegas, fosse de meros funcionários e acadêmicos.

E quanto ao mito de Mao antes de 1949? O herói da Longa Marcha que em 1934-35 liderou o maltrapilho Exército Vermelho em segurança até Yenan, o quartel-general da guerrilha. De lá, Mao combateu Chiang Kai-shek e preparou a vitória comunista definitiva em 1949.

Como mostram Chang e Halliday e alguns estudiosos anteriores, o mito alimentado por Mao ao jornalista americano Edgar Snow em 1936 é, em grande parte, uma mentira.

Na própria Longa Marcha - e isto é um furo de Chang e de Halliday - o momento mais heróico, o cruzamento de uma ponte em chamas sobre um desfiladeiro por destemidos soldados vermelhos, com as forças de Chiang Kai-shek do outro lado, jamais aconteceu. Na verdade, Chiang Kai-shek aparentemente permitiu que os vermelhos escapassem.

Tudo isso foi há muito tempo. Por que, então, proteger o presidente agora? Porque sem Mao um buraco negro se abriria aos pés do Partido Comunista. Afinal, em 1956, quando Nikita Kruchev denunciou Stalin, Lenin foi poupado. Sem Mao, seus herdeiros - pois é isso que eles são - ficariam pendurados num vazio ideológico. Portanto, não pode haver nenhum vazio. Todo aluno chinês de escola primária recebe aulas regulares do que chamam "educação política". No currículo, a história do Partido Comunista - seus triunfos sobre o imperialismo, o capitalismo explorador, o latifúndio, e Chiang Kai-shek - é celebrada, assim como a erradicação da fome, da prostituição, das doenças venéreas e do ópio pelo Partido Comunista. Quem foi o pai de tudo isso? Mao Tsé-tung, o Grande Timoneiro, o Mestre, e o Sol Vermelho Mais Vermelho em nossos Corações, o quase deus que em 21 de setembro de 1949 proclamou: "O povo chinês se levantou."

Demolir o presidente seria catastrófico para a liderança atual. Esses líderes, afinal, continuam enfatizando que "o Partido Comunista comete erros, mas somente o Partido Comunista pode corrigi-los."

Mas e se o próprio Partido for um erro e Mao um erro ainda maior?