Título: Mercadoria de ocasião
Autor: Dora kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/07/2005, Nacional, p. A6

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos negam ter discutido o assunto entre si. Mas ambos examinam em suas respectivas searas - FH na oposição, o ministro na situação - a hipótese concreta de PT e PSDB apoiarem uma proposta de extinção do instituto da reeleição para presidente, governadores e prefeitos com ampliação dos mandatos de quatro para cinco anos.

Oficialmente, o argumento é o de sempre: aprovada em 1996, a reeleição não deu certo, mostrou-se nefasta, um incentivo ao apetite eleitoral dos governantes que, por causa dela, não dariam a devida atenção à eficiência de suas administrações.

Oficiosamente, o sentido dessa proposta, no momento, seria o de oferecer ao presidente Luiz Inácio da Silva uma saída honrosa para não disputar um novo mandato em 2006.

O assunto é debatido com muito mais desenvoltura na oposição. Não por coincidência, Fernando Henrique lançou a idéia, na forma de conselho, de Lula desistir da reeleição a fim de readquirir fôlego para governar.

No governo fala-se disso com ares ainda de cautela, pois assumir o debate agora equivaleria a reconhecer a impossibilidade de uma vitória de Lula.

Uma sugestão dessa natureza partindo de adversários políticos não deixa de parecer presente de grego: a despeito do discurso da preferência pela candidatura de um Lula desgastado, preferem mesmo é Lula fora da disputa.

Por mais combalido que o presidente da República esteja em função do escândalo envolvendo o PT, assumir de público que não será candidato é um risco: de um lado, pode - como argumenta FH - desanuviar o ambiente institucional; mas, de outro, fragiliza Lula, que passa a não representar mais uma expectativa de poder para os partidos ainda aliados.

De qualquer modo, é visível a olho nu a quantidade de versões circulantes atribuídas a assessores anônimos, segundo os quais o presidente Lula estaria francamente tentado a desistir, já que sempre foi contrário mesmo à reeleição.

É uma maneira de testar reações e também preparar terreno para uma possível desistência, dando ao gesto um caráter de iniciativa e não de defensiva. Nesta hipótese, o plano B seria a candidatura do ministro da Fazenda, Antonio Palocci.

Na visão de tucanos como Fernando Henrique e o prefeito de São Paulo, José Serra, a sugestão teria de partir do governo. Mas o PSDB está de armas e bagagens prontas para embarcar na defesa de uma emenda constitucional revogando a bandeira mais vistosa, depois da estabilidade econômica, do governo FH.

O ex-presidente, aliás, é dos poucos a exibir algum constrangimento pela evidência do casuísmo contido no afã dos tucanos de acabar com a reeleição.

Chega a ensaiar certa contrariedade, mas não muita, ao ponto de se contrapor aos correligionários que, depois de passar os dois primeiros anos de governo do PSDB "vendendo" a reeleição como um avanço institucional, típico das democracias modernas, agora resolveram que a experiência está esgotada.

Menos de dez anos depois de instituída, sem que nenhum fato convincente possa demonstrar como irrefutável esse argumento. Se o procedimento dos políticos piorou nesse meio tempo, francamente, a responsabilidade não é da chance de o eleitor optar por renovar mandatos satisfatórios.

É da falta de compostura de cada um. Presente em propostas de alterações constantes nos meios e modos da democracia; não no sentido de aperfeiçoar as normas, mas no intuito de manejá-las como mercadorias a serviço de suas conveniências de ocasião.