Título: Oposição quer abrir caixa-preta dos cartões
Autor: Fausto Macedo
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/07/2005, Nacional, p. A10

Despesas não-discriminadas do gabinete da Presidência somam R$ 18,6 milhões

Acuado pela CPI dos Correios, que revela segredos do mensalão no Congresso e põe sob suspeita alguns de seus principais aliados, o governo Lula enfrenta uma outra batalha desgastante que pode lhe custar mais pontos naquilo que tanto preza, a popularidade - está em curso nova ofensiva da oposição, que rastreia gastos de servidores com cartões corporativos. As despesas do gabinete da Presidência, quase nunca discriminadas, já somam R$ 18,69 milhões em dois anos e meio de gestão do PT. "Segurança nacional" é a alegação oficial para cobrir com o manto do sigilo as operações. Despesas de caráter "secreto" ou "reservado" representaram gasto total de R$ 10,067 milhões em 2003, primeiro ano de Lula no poder. São contas sem detalhamento, embora amparadas por legislação própria. Há suspeitas, no entanto, de que os cartões também estariam sendo utilizados para ocultar aquisições de mimos, roupas, calçados, utensílios domésticos e até guloseimas para consumo de servidores e seus familiares.

Do total desembolsado pelo Tesouro para aquisições e serviços diversos no gabinete da Presidência, R$ 12,82 milhões foram faturados - débito em conta. Os outros R$ 6,49 milhões foram pulverizados em saques na boca do caixa. Em 2004, foram sacados R$ 3,13 milhões pelos funcionários credenciados do Palácio, ou 456,8% a mais que a despesa realizada dessa forma em 2002 (R$ 562,25 mil), último ano da administração Fernando Henrique Cardoso.

Na fatura, a despesa alcançou R$ 6,09 milhões no exercício de 2003, ou 859,34% a mais do que em 2002 (R$ 709,4 mil). Nos primeiros seis meses de 2005, os corporativos da Presidência representaram desembolso de R$ 2,63 milhões - dado atualizado até 6 de julho pelo Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi) -, o que dá média de R$ 440 mil por mês, ou R$ 14,6 mil por dia. Desse total, R$ 2,1 milhões foram faturados, e R$ 528,1 mil pulverizados por saques em espécie.

A análise sobre o desempenho dos cartões em 2005 mostra que o ritmo de saques no caixa sofreu uma redução - isso coincide com o cerco que a oposição deflagrou, levando o Tribunal de Contas da União a abrir auditoria. No entanto, o consumo faturado permanece à toda - em 2004, foram gastos R$ 4,62 milhões: este ano, de janeiro até o último dia 6, os lançamentos chegam a R$ 2,107 milhões.

"O uso do cartão de forma limitada e contida é algo aceitável, mas do jeito que as coisas estão sendo feitas começa a partir para o abuso", alerta o deputado Alberto Goldman (PSDB-SP), que apresentou denúncia formal ao Tribunal de Contas da União contra o Decreto 5.355, de janeiro deste ano, por meio do qual o governo - pressionado pelas denúncias sobre gastos sem controle - alterou as regras para o uso dos cartões.

Os corporativos não ficam restritos aos limites do Palácio. Multiplicam-se os cartões pela Esplanada. Já são 4.160 em uso. Ministérios e seus órgãos executivos - unidades gestoras, segundo a nomenclatura da máquina - fazem uso do expediente, muitas vezes sem cerimônia.

No exercício de 2004, essas unidades autorizadas consumiram R$ 15,22 milhões, ou 192,39% a mais que em 2002 (R$ 5,2 milhões). Em saques, foi registrada saída de R$ 8,87 milhões em 2004, quantia superior ao débito em conta, que chegou a R$ 6,34 milhões no mesmo período.

A voracidade dos corporativos para cobrir despesas denominadas "suprimento de fundos" - pagamentos de pequeno valor, não afeto à Lei de Licitações - mereceu advertência do TCU. "A equipe de auditoria registra a existência de dificuldades, mesmo para os acostumados a lidar com o Siafi, para a obtenção de detalhes relativos às transações efetuadas com cartão de crédito", acentuou o ministro Marcos Vinícios Vilaça. "As dificuldades surgem quando se deseja o detalhamento dessa natureza de despesa, ou seja, saber-se exatamente qual tipo de material permanente ou equipamento foi adquirido." O ministro advertiu sobre o "risco de fracionamento de despesas e a conseqüente fuga à modalidade correta de licitação, decorrente de um uso indiscriminado, e portanto incorreto, do cartão".

Vilaça não vê o cartão como um vilão. "Antes de representar um mal, traz benefícios para a administração na medida em que possibilita maior transparência na execução financeira". Mas adverte: "A má utilização do cartão pode eliminar os ganhos."

MÁ GESTÃO

Segundo Vilaça, "a possibilidade de ocorrência (irregularidades) é real, principalmente em órgãos onde há um número apreciável de servidores autorizados a efetuar despesas." O ministro do TCU recomendou ao governo mudanças na norma que disciplina os corporativos, para observância dos limites da concorrência pública.

"A má gestão financeira dos recursos públicos é outra conseqüência direta da utilização de saques", anotou. "Em razão das evidentes desvantagens, o uso do cartão para saques em espécie deve ser excepcional e devidamente justificado."

O cartão no âmbito da administração federal foi instituído em 1998, mas somente a partir de 2001, com o Decreto 3.892, é que sua utilização se disseminou. A idéia era restringir os gastos com a aquisição de passagens aéreas e compras de materiais e serviços de pronto pagamento e entrega imediata, enquadrados como suprimento de fundos.

No início do ano, diante do relatório do TCU e da pressão da oposição, o governo decidiu alterar as regras do cartão. Editou o Decreto 5.355, que fez surgir uma nova sigla na burocracia de Brasília, o CPGF, que quer dizer Cartão de Pagamento do Governo Federal. Na prática, o CPGF é o cartão corporativo.

Na denúncia formal ao TCU, Goldman rebela-se contra o artigo 2.º, inciso III, que prevê o pagamento de diária de viagem a servidor destinada às despesas extraordinárias com pousada, alimentação e locomoção urbana, "bem como de adicional para cobrir as despesas de deslocamento até o local de embarque e do desembarque ao local de trabalho ou de hospedagem, e vice-versa".

"O cartão foi criado para fazer face às despesas de pronto pagamento que não se subordinem ao procedimento licitatório, porém com a devida prestação de contas", argumenta o deputado. "Mas a indenização a servidor a título de diárias por prestação de serviço fora do seu domicílio não se inclui na categoria de despesas de pronto pagamento, uma vez que seu objetivo é o de ressarcir o servidor que não precisará prestar contas, individualizadamente, da utilização desses recursos."

PRIMEIRA-DAMA

No governo Lula, porém, tais operações foram ampliadas. "As operações foram expandidas demais e aí chega ao descontrole", reitera Goldman. "Sempre que o poder público liberaliza demais aumenta o risco de desvios de finalidade, surgem despesas inadequadas, despesas privadas pagas com recursos do Tesouro."

Para o deputado, "o exagero está comprovado" no salto verificado entre 2002 e 2003. "É um governo que perde o controle quando sofre pressões de todo lado", avalia Goldman. Ele acredita que a administração Lula "deu uma freada" na onda de gastos com cartões depois que o TCU auditou as contas.

"A realização de saques tem viabilizado procedimentos impróprios", denuncia o deputado Augusto Carvalho (PPS), da Câmara Distrital. Segundo ele, há pagamentos sem prévia liquidação da despesa, manutenção de recursos públicos em poder do portador até a data da efetiva realização da despesa, ressarcimento de despesas pagas por outros meios, como cheques ou cartões de crédito de terceiros. Carvalho verificou que as despesas de caráter secreto ou reservado vêm apresentando crescimento significativo. "É preocupante. Em outras épocas, durante o governo Collor (1990-1992), uma auditoria encontrou nessa rubrica despesas pessoais da então primeira-dama."