Título: A CPI como drama social
Autor: Roberto DaMatta
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/07/2005, Caderno 2, p. D12

Depois do malfadado governo Collor, ousamos pensar que as crises fossem coisas do passado. Conquistada, com o Plano Real, a estabilidade econômica, as chamadas "crises políticas" teriam se transformado em peças de um museu de costumes políticos. Antigamente havia golpe, conspiração, polarização das opiniões com a troca dramática de acusações públicas e má-fé com objetivo político, mas agora tudo estava tão calmo que se podia ouvir uma mosca voando. Até que as CPIs nos colocaram no olho desse conjunto vergonhoso de fatos deflagrados pelo deputado Roberto Jefferson. Vale a pena, pois, tomar o partido do entendimento e do estranhamento para olhar essas comissões parlamentares de inquérito com os olhos de Victor Turner, um antropólogo escocês de rara sensibilidade que propôs a noção de drama social para examinar esses momentos extraordinários que, como as catástrofes e os acidentes, são recorrentes, mas não planejados e esperados pela sociedade. Para Turner, uma diferença importante entre ritual e drama era que, no primeiro caso, começo, meio e fim são fixados pelos costumes e ortodoxias, mas no drama social os resultados são inesperados. Daí a insegurança que os dramas, encarnados como crises, revoltas, rebeliões, e, no caso brasileiro, denúncias produzem, como faz provam os acontecimentos que permeiam o nosso cotidiano. As CPIs têm começo, mas ninguém sabe como vão terminar, diz a nossa mais profunda sabedoria parlamentar.

E não poderia ser outro modo já que os dramas sociais desdobram-se em quatro momentos padronizados: uma fase inicial causada pelo rompimento de uma norma bem estabelecida pelo grupo, o que transtorna suas redes de elos sociais e rotinas; uma segunda fase, na qual instala-se uma crise decorrente dos vários conflitos promovidos pelo rompimento da norma; segue-se a isso um momento no qual são chamados à cena mecanismos de apaziguamento, pacificação e reparo, no qual todos acentuam suas razões, o que inevitavelmente incluiu a participação de líderes do grupo social; e, numa fase final, haveria reintegração ou - e esse ponto é a chave da incerteza - mudança, dada a irrevogabilidade do rompimento. Sem uma receita para vislumbrar o seu final, os dramas sociais levam a especulações sobre as suas conseqüências, algo complicado de realizar, porque eles são o resultado não antecipado do próprio desenrolar da vida social. No drama em pauta, quem poderia prever que a maior crise da história do PT e do governo Lula viria justamente de um aliado, no qual o presidente depositava aquela confiança dos amigos íntimos: aqueles para quem se entrega um cheque assinado...

As CPIs são dramas por muitos motivos. Primeiramente, porque investigam a elite, questão tabu num sistema cuja nata jamais se questiona, e em que o verbo inquirir, nas suas acepções de esclarecer e perguntar, tem conotações negativas. Como o estudo do "você sabe com quem está falando?" (publicado no meu Carnavais, Malandros e Heróis) permite deduzir, no Brasil só os inferiores são sujeitos a produzir provas e a responder a questões. Perguntar é prerrogativa da autoridade, cuja palavra seria sempre honrada. Responder e provar é dever do inferior que sempre comete faltas e deve produzir prova de sua honradez. Delúbio, Serginho e Karina não me deixam mentir. A discussão patética entre os membros da CPI, sobre a possibilidade de uma temível abertura dos sigilos bancários e telefônicos de seus integrantes, mostra como a produção da honestidade ainda é uma questão somente para um parcela da sociedade. Os superiores estão sempre acima de qualquer suspeita...

Tudo isso revela como a igualdade é um problema e um valor ausente da nossa concepção de democracia, cujo assento se realiza somente no formalismo das constituições e outras dimensões legais do sistema. Daí a confusão e os arrepios morais para decidir quem deve ser convocado a depor, já que esses inquéritos são tidos como coisas vergonhosas, justamente porque põem em causa a hierarquia e a soldagem das pessoas com as posições que ocupam. Como estamos vendo, a história de um sujeito o exime de ser chamado a depor, confirmamos o nosso mais reacionário e hipócrita viés aristocrático.

Numa sociedade na qual a ascensão social e a entrada no governo, com a "posse" de um cargo público aristocratiza, criando impunidades e o privilégio de desobedecer as leis (este é o texto crítico dessas CPIs); num sistema político no qual os candidatos a cargos públicos (dos mais habituais aos mais dignos) são transformados pela etiqueta das assembléias em "nobres" senadores e deputados; num espaço onde todos se intitulam representantes de um "povo", cuja força vem precisamente do fato de ser um hóspede não convidado, ser inquirido é o mesmo que tornar-se réu: um "indivíduo" sem relações, isolado e prestes a ser posto no exílio que o tira deste mundo, esse castigo maior de nossa vida social. Nada pior, portanto, para qualquer "alto companheiro" a quem se deve lealdade e, sobretudo, condescendência, do que ser posto no duro e desconfortável "banco dos réus" onde deve responder pelos seus atos. Tarefa ofensiva numa cultura de "homens bons" no qual as atribuições sociais se reduzem apenas aos direitos (lidos invariavelmente como privilégios), sendo inerentes aos superiores que se sentem ofendidos quando deles são cobradas algumas obrigações. (Se o mundo não acabar, eu continuo na próxima quarta-feira).