Título: Estudo mostra atrito do governo com laboratórios
Autor: Lígia Formenti
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/07/2005, Vida&, p. A15

Um estudo encomendado pelo Ministério da Saúde sobre ações judiciais para obtenção de medicamentos antiaids revela uma batalha travada nos bastidores entre governo e indústria farmacêutica. De um lado, laboratórios agindo de forma "agressiva" para ampliar o número de pacientes usando seus mais recentes medicamentos. De outro, o Programa Nacional de DST-Aids tentando reduzir as pressões para prescrição das drogas, muitas delas não incorporadas à lista de distribuição gratuita. Entre exemplos de tática agressiva está a do Abbott, que, em 2002, fez doações do Kaletra - cuja patente agora se negocia - para pacientes do serviço público de saúde. Alexandre Grangeiro, ex-coordenador do programa, confirma a pressão. "Recebemos a informação de que eles doavam medicamentos para pacientes. Depois, suspendiam o fornecimento, o que gerava um aumento da procura na rede pública." O programa pensou em processar o laboratório. "Mas não foi necessário. Proibimos os médicos de receber doações esparsas", diz.

Ontem, diretores do Abbott não foram localizados para comentar o episódio. Mas um trecho do estudo informa que representantes do laboratório desmentiram acusações de supostos incentivos às prescrições médicas.

Intitulada O Remédio via Justiça, a pesquisa faz uma análise de cerca de 400 ações, movidas desde 1995. O coordenador do estudo, Mário Scheffer, observa que a Justiça sempre foi uma estratégia bastante usada por pacientes que buscam acesso a anti-retrovirais. "É um recurso valioso, que apressou a criação do programa de distribuição gratuita."

O trabalho reúne indícios de que muitas vezes a indústria incentiva médicos a receitar seus remédios. "Por conta de um verdadeiro assédio comercial, é difícil que médicos consigam ficar 'imunes' ao contato com representante de vendas, ao material promocional, após a participação em um congresso realizado por um laboratório", lê-se no texto.

Grangeiro vai além: "Em cada serviço de saúde, há representantes de laboratórios, que mantêm contato estreito com profissionais". Embora isso não seja ilegal, ele pondera que interfere no programa de distribuição. "Incentivados e convencidos pela indústria, muitos médicos aumentam as prescrições. Como as drogas não estão disponíveis, pacientes ingressam na Justiça."

Tal procedimento nem sempre traz benefícios. "Nem sempre a indicação do médico é adequada. E isso apenas retarda o acesso do paciente ao medicamento de fato eficaz", observa Grangeiro. Ele, que hoje é consultor do Programa Estadual de DST-Aids, admite que o problema em parte é provocado pela demora no governo em incluir novas drogas na lista de medicamentos disponíveis. "Esta é, de fato, uma brecha. Mas é preciso criar mecanismos para evitar essa relação entre indústria e profissionais de saúde, aumentar a fiscalização e criar mecanismos para que, em alguns casos, os pacientes tenham acesso a medicamentos mesmo ainda em fase de testes", diz. "Isso tem de ser fruto de consenso entre médicos, não de pressão de um laboratório".

O estudo de Scheffer oferece também algumas sugestões. Entre elas, programas de extensão destinados a profissionais de saúde que contemplem inclusive viagens para congressos.