Título: Limpando o passado
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Fonte: O Estado de São Paulo, 16/07/2005, Notas & Informações, p. A3

A Empresa Gestora de Ativos (Emgea), do governo federal, deu terça-feira um novo passo no processo de saneamento do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), ao propor a 187.195 antigos mutuários a renegociação de dívidas de difícil execução. O que distingue este programa, designado ¿Ô de Casa¿, de outros tantos programas subsidiados do passado é que se sabe, de antemão, o quanto ele custará para as contas públicas ¿ neste caso, o montante será de R$ 3,2 bilhões e, desse total, R$ 1,2 bilhão será lançado no Orçamento da União neste exercício. A Emgea foi criada no governo passado para absorver cerca de 800 mil créditos podres da Caixa Econômica Federal (CEF). Esses créditos foram concedidos antes do Plano Real, com cláusula de correção pelo Plano de Equivalência Salarial (PES), no qual as prestações sobem na mesma proporção dos salários do mutuário. Sem a cobertura do Fundo de Compensação de Variações Salariais (FCVS), a liquidação do débito se tornou mais difícil para os mutuários.

Antes de qualquer renegociação, a Emgea vai analisar caso a caso, cotejando o valor de mercado do imóvel financiado com o montante da dívida. ¿O governo não está dando imóveis a ninguém nem perdoando dívidas¿, diz o secretário do Tesouro, Joaquim Levy. ¿Fizemos estudos estatísticos que mostram que o dinheiro será suficiente¿, segundo Levy.

O programa prevê desconto de até 50% na dívida atual, de tal forma que haverá diminuição substancial nas prestações, que passarão a se encaixar na renda dos mutuários. O desconto só se justifica porque o montante das dívidas cresceu em proporção muito maior do que o valor dos imóveis financiados.

Há um flagrante desequilíbrio nos contratos: para um valor médio das dívidas de R$ 131 mil, o valor médio dos imóveis financiados e dados em garantia aos financiadores é três vezes menor, da ordem de R$ 45 mil, calcula a Emgea. É compreensível que, sem uma renegociação, muitos mutuários inadimplentes venham procurando permanecer o mais tempo possível no imóvel, sem pagar as prestações e buscando proteção judicial para não serem despejados.

Há, hoje, elevada inadimplência no SFH, primordialmente devido à crise que afetou a renda e o emprego da classe média nas últimas duas décadas. Os contratos anteriores a 1998 têm inadimplência superior a 30%, e os posteriores têm atrasos médios de apenas 10%, pois as regras foram aprimoradas. E o mutuário terá de desembolsar R$ 250,00 para análise do seu pedido de renegociação do crédito. Embora seja um valor pequeno, ao pagá-lo o devedor deixa evidente sua intenção efetiva de renegociar a dívida.

A Emgea teve um papel a cumprir: o de limpar os balanços da Caixa Econômica Federal, eliminando os créditos podres, separando-os dos demais ativos da CEF. Desde então, os balanços da CEF passaram a mostrar superávit. Agora, o empenho é recuperar recursos emprestados no passado, não podendo ignorar as distorções dos contratos originais.

Se a renegociação proposta pela Emgea é justificável, cabe notar que nada disto ocorreria se o SFH não fosse um sistema engessado por regras rígidas do BNH, primeiro, e, depois, do Banco Central. Estas regras só aos poucos vêm sendo abrandadas.

No exterior, desequilíbrios nos financiamentos habitacionais semelhantes aos verificados no Brasil foram resolvidos por mecanismos de mercado. Os mutuários procuravam a instituição credora e combinavam a renegociação, sem intervenção do Estado. No Brasil, isto não é possível porque o maior dos agentes de crédito imobiliário é uma entidade estatal, a CEF, que também controla os recursos do FGTS.

Com o aperfeiçoamento das regras do crédito imobiliário e o aumento das garantias dos empréstimos ¿ via instrumentos como o patrimônio de afetação e a alienação fiduciária de bem imóvel ¿ a tendência será a continuidade da diminuição da inadimplência dos mutuários, favorecendo o aumento da oferta de crédito e permitindo baratear o custo das operações. O que não faltará é dinheiro, pois, como noticiou o Estado de quinta-feira, apenas a CEF tem R$ 8 bilhões para emprestar neste semestre.