Título: Um candidato a homem providencial
Autor: Laura Greenhalgh e Mônica Manir
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/07/2005, Aliás, p. J4

Ele chega à presidência do partido disposto a amenizar atritos, dissipar mágoas, resgatar a militância e superar a crise. Essa missão é humana?

"Chegamos tensos e preocupados. Agora estamos menos tensos, porém preocupados." Com essas palavras, o ministro Tarso Genro definiu, em Paris, o estado de espírito da delegação que acompanhou o presidente Lula na viagem à França durante a semana. A distensão dos humores nada teve de lenta e gradual, como um dia quis Geisel, em relação ao regime. Ao contrário, tiveram efeito imediato sobre o entourage presidencial o clima de festa das homenagens ao Brasil, a ovação a Lula em show do ministro Gilberto Gil, a simpatia do anfitrião Jacques Chirac, os elogios ao governante brasileiro na imprensa francesa e até as estripulias da Esquadrilha da Fumaça no céu parisiense. Tudo serviu para aliviar angústias de semanas anteriores, ainda que Lula já tivesse deixado o Brasil a bordo de uma favorável pesquisa de popularidade. Na quinta-feira, 14 de julho, penúltimo dia da visita a Paris, Tarso Genro falou com exclusividade para o caderno Aliás. Ministro da Educação por mais alguns dias apenas, Genro reconhece as dimensões do desafio que tem pela frente como novo presidente do PT, posto que lhe renderá emoções fortes nos próximos tempos. "Vou jogar a minha vida política nisso", afirmou, referindo-se à reconstrução de um partido que alardeou pureza ética durante anos, mas hoje se vê cercado de denúncias de corrupção. Avisa que não assumirá a função com ares de interventor ou pretensões inquisitoriais. Ao contrário. Quer costurar "as relações de camaradagem" do petismo, ouvindo todos os setores e tentando reanimar a militância. Sabe que é missão para Hércules. Num ponto é particularmente enfático: a defesa de José Genoino, que deixou a presidência do PT abalado por episódios que levaram ao afastamento de Delúbio Soares e Silvio Pereira, dois homens fortes da cúpula partidária, e também pela aparição bizarra de um assessor petista, preso ao levar US$ 100 mil escondidos na cueca. "Por Genoino eu boto a mão no fogo", garante o sucessor. "Ele voltará ao comando do partido." Nascido em São Borja, advogado sindicalista e ex-prefeito de Porto Alegre por duas vezes, Tarso Genro, 58 anos, fez da implantação do orçamento participativo na capital gaúcha um exemplo para o País. Também assina livros nos quais filosofa sobre os rumos da esquerda. Agora, contudo, terá de passar da teoria à prática para administrar uma crise e tanto.

Nessa viagem a Paris, sabe-se que o senhor e o presidente passaram boa parte das horas de vôo conversando. O que tanto falaram?

Passamos a viagem inteira, o presidente, Marco Aurélio Garcia (chefe da Assessoria Especial da Presidência da República), Luiz Dulci (ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República) e eu, conversando sobre o governo, as perspectivas, a nova etapa que queremos constituir no partido. Eu disse ao presidente que vejo esse processo todo como uma incursão ético-política, não uma incursão inquisitorial, porque não temos o poder de abrir contas dos outros, nem de fiscalizar telefones, nem de fazer investigação policial dentro do PT. São as autoridades que têm de fazer isso, se for o caso. Já o processo interno do partido é algo diferenciado.

Diferenciado em que sentido?

Estamos numa situação de crise, a mais forte desde a fundação do Partido dos Trabalhadores. Uma crise na qual nossos valores fundamentais estão sendo impugnados pela sociedade. Então temos de nos reconstruir do ponto de vista ético e político, reconstruir relações com a base militante e com a base social que nos deu origem. Isso exige um processo de médio e de longo prazo, que não se faz com ações espetaculares. De qualquer forma, queremos começar imediatamente a sinalizar essa reversão.

Mas o senhor não acha que o PT demora demais para reverter situações?

Se for um processo sério, não será jamais um processo rápido. Processo rápido, na melhor postura do stalinismo ou do fascismo, seria o partido querer entregar duas ou três cabeças à opinião pública e aos nossos adversários, para dizer "novamente somos impolutos". Não. Temos de verificar métodos, avaliar informalidades que nos parecem inaceitáveis, pesar os procedimentos políticos que possam ter criado um caldo de cultura propício à irregularidade. E, progressivamente, reconstituir ligações internas, qualificar relações de confiança, abrir um diálogo mais respeitoso com as correntes do partido, aproveitando inclusive suas críticas. Assim criaremos um novo sistema, com mais força, mais legitimidade e mais eficácia do que o anterior. Não que o anterior fosse ruim. Ao contrário, ele gerou o presidente Lula. Só que, na minha opinião, aquele sistema se esgotou, como estão a demonstrar os acontecimentos que a própria imprensa tem divulgado.

Por unanimidade, o PFL expulsou o deputado João Batista Ramos da Silva, surpreendido pela PF com R$ 10 milhões em dinheiro vivo, no dia seguinte ao flagrante. Para a população, ficou a impressão de que o partido agiu rápido, afastou o problema, cortou logo o mal...

Esse foi o ato de um partido que respeito, que tem todo o direito de tomar tal medida, mas cujo efeito se restringe à opinião pública. Não é em 24 horas que se toma uma decisão do gênero, mesmo que seja amarga e esteja provocando sangramento. É preciso ir à essência e checar as condições que geraram o comportamento suspeito. As pessoas têm o direito de defender a sua honra, defender seus padrões de dignidade, e só assim se chega a um resultado que atinge toda a comunidade partidária. Não se pode agir apenas para dar uma satisfação imediata para a opinião pública.

Mas os afastamento de Delúbio Soares, Silvio Pereira e José Genoino não têm a ver com essa preocupação com a opinião pública?

Os companheiros Delúbio, Silvio e Genoino optaram pelo afastamento por decisão política própria. Não houve uma medida draconiana que tenha se originado de alguma instância decisória do partido. Acho que os três fizeram bem em tomar essa atitude. Eles preferiram preservar o partido. Mas aqui é preciso fazer uma distinção: Genoino saiu da presidência do PT em função de um caso concreto, relacionado ao seu irmão, e não por qualquer irregularidade quanto ao seu currículo.

Então, o que levou ao afastamento de Genoino foi a prisão de José Adalberto Vieira da Silva, pego com US$ 100 mil escondidos na cueca?

Genoino saiu da direção do PT porque se sentiu emocionalmente abalado por um caso que, como fomos informados, envolve o nome do irmão dele. Genoino disse a seus companheiros de partido que o episódio estava lhe causando grande constrangimento pessoal, inclusive porque não tinha a menor idéia do que se tratava. Mas não esmoreceu, não vai esmorecer e vai voltar. Genoino é um grande quadro. Ele tem muito a dar pelo País ainda. Eu o conheço há mais de 30 anos e por ele boto a minha mão no fogo. Talvez eu não possa dizer isso de outras pessoas, não porque vislumbre alguma desconfiança, mas porque não tenho com os demais o mesmo convívio, a mesma intimidade e a história que tenho com ele.

Que desfecho o senhor imagina que esse caso terá?

A direção regional do partido, lá no Ceará, tem de investigar a fundo o que houve. Se existiu ilegalidade, ou qualquer semelhança com o que está sendo dito pela imprensa, o militante tem de ser expulso. Se recorrer ao Diretório Nacional, certamente a expulsão será mantida. Mas, insisto, é necessário que ele tenha direito a defesa, explique o que aconteceu, e o PT, por sua vez, não pode abrir mão de verificar em que condições as irregularidades aconteceram.

O deputado José Nobre Guimarães, irmão de Genoino, vê nesse episódio uma armação contra o PT. O senhor acredita nisso?

Se teve armação, isso foi secundário, na minha opinião. Acho que não vivemos um Plano Cohen (plano de tomada do poder atribuído à Internacional Comunista em 1937, mais tarde denunciado como farsa do Estado Novo para justificar a implantação da ditadura). Pode ter ocorrido uma ou outra provocação, sim, uma ou outra crítica mais radicalizada dos nossos adversários para tirar proveito político, mas a essência do problema não está aí. Existe visivelmente um desequilíbrio nas relações internas do PT e temos de admitir que a sociedade nos faz críticas por algo que é real.

Como o senhor pretende harmonizar as correntes de esquerda e o campo majoritário do partido, hoje alvo de tantas denúncias?

Essa relação tem de melhorar. Possuímos companheiros que são pensadores, grandes elaboradores, que estão tanto nas posições mais à esquerda quanto nas mais moderadas, a chamada, entre aspas, socialdemocracia de direita. Precisamos compreender que ninguém detém a verdade absoluta, ninguém representa preliminarmente os trabalhadores ou a melhor possibilidade de democracia para o Brasil. Ninguém representa, por si mesmo, pela própria autoridade, ou pela trajetória individual, a trajetória do PT. O partido é plural, tem posições ideológicas distintas, é laico filosoficamente e abriga várias correntes de opinião. Essa diferenciação é o que qualifica o processo. E não o sectarismo, o permanente embate de facções.

Militantes ressentidos com esse embate vão querer participar do processo de reconstrução?

Pelos sinais que temos, sim. Se não nos dirigirmos à militância, se não voltarmos a ter uma postura frente à sociedade, uma postura que retome o respeito pela nossa história e pelo nosso projeto, ameaçaremos a própria existência do partido. Devemos falar também aos não-petistas, aos que são neutros, até aos que são nossos adversários. Mas esse não é um trabalho de curto prazo. Não é com o corte de duas, três ou dez cabeças que tudo vai se resolver. É necessário recompor as relações de camaradagem.

O que significa "recompor relações de camaradagem"?

Toda essa dificuldade que estamos enfrentando gerou diferentes níveis de atrito, de desconfiança, às vezes de falta de solidariedade. Nós deparamos com posturas voltadas para a promoção individual. É imenso o desgaste interno. Conseguiremos melhorar esses padrões de relacionamento sendo mais solidários dentro do partido, mesmo mantendo nossas diferenças. Daí então faremos a transição para uma situação melhor do que a que nos encontramos. Vamos sair dessa, tenho certeza. Estou jogando a minha vida nisso. Minha vida política.

Genoino fez uma bela carreira parlamentar, amargou uma derrota como candidato a governador e foi arrastado pela correnteza de denúncias, como presidente do PT. O senhor teme por sua própria biografia política no novo posto?

Como diz Guimarães Rosa, viver é muito perigoso. Todos nós assumimos riscos. Nunca me neguei a fazê-lo na minha vida política, nem nos momentos mais duros da clandestinidade. Não seria agora que iria recuar. Se eventualmente algum desgaste ocorrer comigo, vou encarar com a mais absoluta naturalidade. Ao menos sei que, por um lado, não vão me pegar. Passei dez anos na administração pública como prefeito, vice-prefeito, secretário de Governo e nunca fui acusado seriamente, muito menos com provas, de nenhum problema ético. Mas, se acontecer qualquer coisa comigo, isso faz parte da vida do político, tenho de saber encarar.

O PT administrou a cidade de Porto Alegre por 16 anos, porém houve crises no governo de Olívio Dutra. O partido perdeu tanto a prefeitura quanto o governo gaúcho. O que aquelas derrotas estavam significando?

Crises existem até em conventos. Existem em todas as organizações humanas. O governo de Olívio Dutra passou por uma CPI muito dura, que foi arquivada pela Justiça sem nada ter sido comprovado. Mas serviu para desgastar. Também podemos ter cometido erros políticos, que causaram a CPI. Hoje vejo que a interrupção da administração do PT em Porto Alegre pode ter tido um lado positivo, embora todos estivéssemos voltados para reeleger Raul Pontes. Precisamos saber por que um partido que ficou 16 anos no poder, que fez as obras mais importantes da história daquela capital, que instituiu o orçamento participativo, que criou toda uma relação internacional para a cidade, que a tornou paradigma em todo o mundo, perdeu a eleição. Algo estava errado.

O quê, por exemplo?

Partido que se perpetua no poder, mesmo pela via eleitoral, vai acumulando vícios. Na minha opinião, provavelmente estávamos um tanto arrogantes, muito cheios de nós mesmos, muito "cheios de si", como se diz por aí. Isso fez com que a população nos desse um corretivo na hora da eleição.

"Cheios de si" como?

Deveríamos ter identificado o momento exato de construir uma política de alianças de alto nível, justamente para mostrar que não éramos os monopolistas da boa administração em Porto Alegre. Tínhamos de nos voltar para setores que demonstravam sanidade ética e política para trabalhar conosco. Mas não fizemos isso. Ficamos com os agrupamentos tradicionais da esquerda, que são a nossa vitalidade, mas podem não ser fortes o suficiente para governar uma cidade complexa como Porto Alegre.

Estendendo esse comentário para o governo federal, o senhor acha que se está construindo uma política de alianças de alto nível?

Não faço juízo negativo de nenhum partido que venha compor nossa política de alianças, mas os problemas que estamos enfrentando nos obrigam a raciocinar melhor sobre a amplitude dessa política. Não desenho aqui paradigmas de boa ou má companhia, porque má companhia existe tanto dentro do partido quanto fora. Há más companhias em todos os lugares e espaços. Aliás, às vezes a gente se olha no espelho de manhã e é bom perguntar se somos uma boa companhia para nós mesmos.

Nas comissões, têm aparecido informações de que dirigentes do PT despachavam do Palácio do Planalto, o que é muito complicado. Por que nunca foi clara a separação entre PT-partido e PT-governo?

Não tenho informações de que dirigentes fizeram isso. Se algo aconteceu, que se investigue. Mas de fato não existe uma tradição de relacionamento adequado entre partidos e governos no nosso país. Tanto é verdade que essas relações são sempre informais, acontecem na penumbra, ficam veladas, sem que a sociedade possa conhecê-las bem. Por quê? Porque a própria tradição partidária no Brasil é muito débil. Parece que as pessoas se envergonham de pertencer a partidos e, ao se envergonhar, dissolvem características. Essa dissolução leva a relações perversas, em que se confundem interesse privado e interesse público, porque os indivíduos não estão mais representando a instituição que lhes dá legitimidade, que é o próprio partido. Uma democracia moderna, que saiba se proteger da corrupção ou que a combata plenamente, é aquela em que os partidos têm identidade forte. E se apresentam publicamente com ela.

Dizem que o PT tem uma identidade demasiadamente paulista. O senhor pretende mudar isso?

São Paulo, por ter sido o berço do PT, exerceu uma hegemonia positiva no partido ao longo de sua história. Mas chega um momento em que é preciso descentralizar mais, em que essa hegemonia se esgota. O PT ficou muito mais capilarizado. Hoje ele tem de acolher um conjunto de lideranças ramificadas em todo o País. Isso, para ter expressão nacional mais forte.

Em 1998, quando Lula hesitava em aceitar a indicação do PT para disputar a Presidência da República, seu nome foi cogitado, ministro. Em que escaninho secreto o senhor guardou o projeto presidenciável?

Sinceramente, não guardei esse projeto em escaninho nenhum. Sempre defendi que Lula deveria ser candidato em 1998 e só admitiria meu nome circulando como presidenciável se a candidatura natural do PT não se confirmasse. Eu achava que Lula tinha de concorrer, embora com possibilidades de perder a eleição. Caso contrário, estaria queimando sua trajetória política. E mais tarde vimos que ele disputou, perdeu a eleição, mas não a trajetória. Agora, do meu ponto de vista, ter sido ministro da Educação no Brasil, ter feito um trabalho que até os adversários consideram, se não bom, pelo menos satisfatório, para mim é o ápice da minha exposição pública.

Como está o projeto da reeleição do presidente Lula?

Acho que está bem. Essa última pesquisa da CNT/Sensus, divulgada na quarta-feira, mostrou que o presidente é respeitado pela população e será novamente o nosso candidato. A minha grande tarefa é reordenar, reorganizar e retomar o prestígio público do PT para reeleger Lula.

O que o senhor achou do "abraço tucano", ou seja, da sugestão do ex-presidente Fernando Henrique de que Lula abra mão da reeleição em troca de apoio político, como se divulgou?

Acho que Fernando Henrique não fez isso. Seria algo muito desqualificado para uma pessoa da estatura dele. O que ele fez foi um ataque político, que adquiriu, como discurso, essa conotação. Jamais uma pessoa séria faria uma proposta como essa que foi divulgada. Seria pedir para um mandatário abdicar de uma prerrogativa constitucional. Isso não existe.