Título: Luciana e o desafio de ser rabina
Autor: Ricardo Westin
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/07/2005, Vida&, p. A22

Paulistana de 30 anos é a 2.ª mulher a liderar uma comunidade judaica no País. E já enfrenta a resistência dos judeus ortodoxo

Há três semanas, após seis anos de preparação num seminário judaico de Nova York, a paulistana Luciana Pajecki desembarcou em São Paulo para encarar o desafio de ser a primeira brasileira a exercer o rabinato no País. Até então, o Brasil tinha uma única rabina, estrangeira. Falar em desafio não é exagero, já que o apego à tradição é uma marca do judaísmo. E a tradição não dá à mulher o papel de líder. "É uma interrogação. Não sei como os rabinos ortodoxos vão me receber, mas não alimento a ilusão de que todos vão me aceitar como rabina", diz. Luciana aceitou o convite do rabino Adrian Gottfried e é, desde o dia 4, a rabina assistente da Shalom, uma das sinagogas mais liberais do País. Foi a primeira a delegar a mulheres duas tarefas masculinas: a circuncisão de recém-nascidos e a reprodução da Torá (livro sagrado) em pergaminhos especiais.

Com uma comunidade judaica estimada em 120 mil pessoas, o Brasil tinha, até a chegada de Luciana, uma única mulher no rabinato, a paraguaia Sandra Kochman, assistente numa sinagoga do Rio. A primeira brasileira a se formar num seminário, nos anos 90, foi Lia Bass, que, por ser mulher, só conseguiu ser aceita nos EUA.

Hoje com 30 anos, Luciana decidiu ir para o Jewish Theological Seminary, da Universidade Columbia, aos 24, após se formar em Direito. A família, descendente de judeus do Leste Europeu, ficou preocupada. Temia que o namorado desistisse dela. "Quem é que iria querer se casar com uma rabina?", ri Luciana. O namorado não só aceitou a idéia como se casou com ela e ainda embarcou para os EUA.

A rabina já fez um casamento e a reza de uma cerimônia de circuncisão. Tem conduzido os serviços da noite de sexta e da manhã de sábado na Shalom. Os freqüentadores estão se acostumando a ver no púlpito sua juventude e seus olhos claros (nem ela sabe se são verdes ou azuis) e a ouvir sua voz doce cantando trechos da Torá.

A rabina Lu, como é conhecida, falou ao Estado na semana passada. Antes de posar para as fotos, passou batom e pôs na cabeça um quipá (solidéu judaico) florido. Só apagou o sorriso quando teve de decidir se deveria aparecer nas fotos com tefilins (duas caixinhas que contêm trechos da Torá e são atadas à testa e ao braço). "Ver o tefilim numa mulher choca." Refletiu por alguns instantes e, com a voz firme, resolveu pôr a indumentária. "Às vezes é importante você se firmar. Eu sou uma rabina."

Por que decidiu ser rabina?

Eu cresci com questões existenciais muito fortes. Aos 18 anos, descobri que o judaísmo falava dessas questões. Foi então que fiquei com vontade de me aprofundar no judaísmo. Como eu tinha pouco conhecimento, o rabinato seria o curso ideal, por ser bem amplo. A idéia era ir para o seminário apenas para aprender. Só depois, ao longo do curso, veio a decisão de ter o rabinato como profissão. Havia muitas mulheres?

Na minha turma, havia oito homens e nove mulheres. Lia Bass, a primeira brasileira ordenada rabina, se formou três anos antes de eu começar meus estudos, no mesmo seminário. Ela tentou voltar para o Brasil, mas não conseguiu. Naquela época, a comunidade judaica daqui ainda não estava preparada para ter uma rabina.

Agora está?

Sim, pelo menos a comunidade Shalom. Em primeiro lugar, eu já tinha um vínculo com as pessoas daqui. Para eles, não era uma coisa abstrata, não era a vinda de uma mulher rabina. Era a Luciana, que eles já conheciam. Em segundo lugar, o rabino da Shalom sempre estimulou a participação da mulher. Quando eu vinha ao Brasil, ele me dava a oportunidade de liderar algumas festas. Fez com que a comunidade se acostumasse. Lia Bass, na época, não teve esse espaço.

Como rabina assistente da Shalom, qual é o seu trabalho?

Tenho dividido com o rabino a condução dos serviços e das prédicas, mas não há uma divisão rígida. No momento, por exemplo, ele está em Israel e cabe a mim todo o trabalho. Fora isso, vou cuidar da parte educativa, supervisionar o ensino religioso. Mas não só entre os jovens. Quero um estudo do judaísmo adulto. As pessoas normalmente estudam a religião até os 13 anos, quando fazem o bar-mitzvá, a cerimônia da maioridade. Acabam tendo uma visão infantilizada da religião, como se ela fosse apenas um lugar de respostas, não um fórum de perguntas, de formulação de questões existenciais. Outra coisa que quero estimular é a justiça social, um conceito bastante presente na comunidade judaica de Nova York. Eu cresci aqui, num judaísmo que foca muito a questão cultural, a identidade. "Temos de ser judeus por questão de sobrevivência, por causa do holocausto." Claro que o holocausto foi uma coisa importante, que eu nunca descartaria. Mas se foca demais essa questão, que pode virar egocêntrica. Os judeus precisam olhar para fora e ver o que fazer pelos outros. Nos EUA, é comum ver a comunidade judaica desenvolvendo projetos ligados à natureza e ao trabalho, conjugando trabalho social com crescimento espiritual. No Brasil, parece que as duas coisas correm paralelamente. A Igreja Católica, por outro lado, consegue fazer isso bem, com a Teologia da Libertação.

Você pretende ter diálogo com católicos e muçulmanos?

É algo que eu gostaria de fazer. Eu ainda não conheço a comunidade muçulmana de São Paulo. Quanto aos católicos, estou procurando alguém com quem possa estudar o Novo Testamento.

Você já sentiu preconceito no Brasil, um país católico?

Não, nunca tive esse problema. Mas sinto que a comunidade não judaica brasileira não sabe quase nada sobre o judaísmo. Em Nova York, é o contrário. Há um estranhamento muito menor, o que você faz é respeitado, as diferenças convivem de maneira harmoniosa. No Brasil, as pessoas tendem a generalizar, pôr tudo no mesmo barco.

O rabino Henry Sobel ocupa um lugar de destaque na sociedade brasileira. Ele é uma boa imagem da comunidade judaica do País?

Sim, Sobel é uma referência. Ele estimula o diálogo inter-religioso e participa de questões importantes da sociedade. Sobel chegou ao País na época da ditadura e falou muito contra ela. Diria que é em parte graças a ele que os brasileiros sabem mais sobre os judeus do País.

Os ortodoxos são radicalmente avessos à idéia de uma mulher exercendo o rabinato. Como será o relacionamento com eles?

Eu não sei, é uma interrogação. Não sei como os rabinos ortodoxos vão me receber nos eventos em que teremos de nos reunir. Claro que não alimento a ilusão de que todos vão me aceitar como rabina, mas há outros meios de dialogar, ainda que eu tenha de fazer isso como Luciana, e não na condição de rabina.

O que você, por ser a segunda rabina do Brasil, representa para a comunidade judaica?

Ainda não sei que impacto a minha ordenação vai ter na comunidade judaica em geral. Na Shalom, apenas ratifica o lugar que a mulher sempre teve. Uma coisa é falar que a mulher tem o mesmo status do homem, outra coisa é ter isso na prática, ver que é possível conciliar vida moderna com vida espiritual séria.

Ser a segunda rabina do País a deixa envaidecida?

Não, talvez seja até o contrário. Foi um elemento que me fez pensar duas vezes antes de voltar. Se o ofício é solitário para um rabino, imagine para uma mulher. Em Nova York, eu estava rodeada de amigas, que hoje são rabinas e se encontram para trocar idéias. Vou sentir falta desse diálogo. Por outro lado, acho importante que o Brasil tenha modelos de mulheres que contribuem com a religião. Não é uma guerra feminista, do estilo "quero direitos iguais". Estamos vivendo uma onda religiosa tão fundamentalista e dogmática. É nesse contexto que a mulher acrescenta outro olhar. Se a mulher está no centro da mesa, ela quebra o uníssono, a forma única de pensar. Quebra o dogmatismo naturalmente. Acho que vou cumprir essa missão, quero estimular outras mulheres no rabinato. Adoraria se houvesse outras ao meu lado.

Você já pensa em passar de rabina assistente a rabina titular?

Não, por enquanto não, porque meu próximo projeto é ter um filho. O trabalho do rabino não é regrado, não é das 8 da manhã às 5 da tarde. O rabino conduz enterros e cerimônias de circuncisão, coisas que não têm aviso prévio. É preciso estar muito disponível para a comunidade. Com a maternidade, você perde essa disponibilidade.