Título: Maria Antônia, espírito preservado
Autor: Rosa Bastos e Ricardo Brandt
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/07/2005, Metrópole, p. C1

A Maria Antonia, dizem os que por lá passaram, não é só uma rua. É um símbolo. Ali se esboçou a estrutura da universidade ideal. Ali estudou e ensinou a nata da intelectualidade brasileira. Ali estava a vanguarda política dos anos 60. Ali o movimento estudantil viveu seus melhores e piores dias. Por seu valor histórico, o espaço de 300 metros entre a Rua Doutor Vila Nova e a Rua Veridiana pode ser registrado como bem imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a exemplo do que já aconteceu com o ofício de produção de acarajé. O pedido já foi encaminhado e espera-se um parecer, que deve ser favorável. A idéia é registrar o lugar, ou seja, preservar o uso do espaço de modo que, no futuro, não vire uma danceteria, por exemplo. O prédio número 294, de paredes cinzentas e colunas greco-romanas, foi tombado em 1988. Não por valor arquitetônico, que não tem. Mas pelo que representou: de 1949 a 1968, abrigou a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Nada mais, nada menos que o núcleo da Universidade de São Paulo (USP).

Fora as escolas profissionais - Direito, Medicina, Engenharia e Agronomia -, todas as outras funcionavam juntas. Isso correspondia à idéia do grupo fundador da USP, liderado por Julio de Mesquita Filho, de dar uma formação educacional integrada. Em 1968, faculdade e rua se transformaram no centro da oposição política em São Paulo. E para lá convergiam não só os estudantes como outras parcelas da população que se opunham à ditadura militar.

Nos anos 60, a Consolação era uma rua estreita e sinuosa por onde passava o bonde que vinha da Praça Ramos de Azevedo. Perto da faculdade havia livrarias, bares, teatros. "A faculdade contagiava a cidade", lembra a professora Adélia Bezerra de Menezes. Ela e seus colegas iam a pé para a Biblioteca Mário de Andrade, a Livraria Francesa, o Teatro Municipal, o Bar do Zé, tudo pertinho. "Era um lugar de encontro e de confronto para nós, um símbolo."

O filósofo José Arthur Giannotti resume: "A Maria Antônia significou um novo estilo de pensar." E isso em todos os sentidos. "Lá, os departamentos eram pequenos e os contatos, face a face. Nossos amigos e nossos amores, tudo girava em torno da Maria Antônia. Certa vez, um militar me perguntou: 'Mas vocês só se casam entre si, que negócio é esse? Há troca de mulheres?' Para eles, éramos a imagem da promiscuidade."

Segundo a dramaturga Consuelo de Castro, antiga aluna de Ciências Sociais, eram ingênuos, isso sim. "Mas nutríamos afetos verdadeiros. As pessoas se amavam e, quando se odiavam, eram frontais. Embora as discussões fossem acaloradas, havia respeito pelo outro."

INTANGÍVEL

Talvez seja esse espírito intangível - o bem imaterial - que se deseja tornar patrimônio cultural. "Essa é uma linha de trabalho nova", diz o antropólogo Antonio Augusto Arantes, presidente do Iphan. Só no ano passado a Unesco aprovou a convenção internacional do patrimônio imaterial. Em alguns países, como o Japão, porém, o conceito existe desde a década de 50.

Bem imaterial, explica, é toda prática, representação, expressão, conhecimento e técnica que as comunidades e as pessoas reconhecem como parte de sua cultura. Apesar de a lei ser de 2000, o Iphan iniciou os registros no ano passado. Eles são feitos em quatro livros: o Livro dos Saberes, o Livro das Formas de Expressão, o Livro das Celebrações e o Livro dos Lugares. Apenas o último está em branco - e a Rua Maria Antônia é candidata a estreá-lo.

Mas a diretora do Departamento de Bens Imateriais do Iphan, Márcia Sant'Anna, faz um alerta. "O fato de o bem ser registrado não é garantia de que ele nunca deixe de existir." Segundo ela, o objetivo principal do reconhecimento é produzir documentação etnográfica e audiovisual. "Até porque, por mais que sejam feitas ações para preservação, aquela referência está vinculada ao grupo que a produz. Esse grupo pode decidir um dia que não vai mais realizar aquilo."