Título: Leniência preocupante
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Fonte: O Estado de São Paulo, 17/07/2005, notas e Informações, p. A3

E mbora a Lei dos Crimes Hediondos obrigue os autores de delitos violentos, como estupro, seqüestro, latrocínio, tráfico de drogas e falsificação de medicamentos, a cumprir integralmente suas penas em prisões de segurança máxima, a magistratura tem concedido liminares a muitos deles, autorizando-os a passar do regime fechado para o semi-aberto, o que lhes permite sair da cadeia de dia, para trabalhar ou estudar, e descontar um dia da condenação a cada três dias trabalhados. O Supremo Tribunal Federal (STF) tem mais de 20 decisões nesse sentido.

Do ponto de vista formal, essas liminares têm sido concedidas sob a justificativa de que, ao proibir a progressão do regime fechado para o semi-aberto e aberto, a Lei de Crimes Hediondos teria ferido a Constituição. Dos seis ministros do STF que já votaram essa matéria no mérito, num recurso impetrado por um condenado por atentado violento ao pudor, quatro se manifestaram a favor do direito à progressão de regime. Quando o julgamento for retomado, em agosto, bastarão mais dois votos, dentre os cinco ministros que ainda não se manifestaram, para liquidar a questão.

Na prática, porém, o que levou a magistratura a "flexibilizar" a aplicação da Lei de Crimes Hediondos foram as pressões do Executivo, o Poder responsável pelo sistema prisional. Diante da superpopulação dos estabelecimentos penitenciários, há muito tempo o Ministério da Justiça e as Secretariais estaduais de Segurança Pública e de Administração Penitenciária vêm recorrendo a diversos expedientes para aliviar as prisões, como beneficiar o maior número possível de condenados com o indulto de Natal, ou estimular os juízes a serem menos rigorosos.

Há menos de duas semanas, 56 diretores e coordenadores de prisões paulistas, 24 advogados da Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso, 12 procuradores estaduais, 13 promotores e 17 magistrados participaram de um encontro patrocinado pela Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo, em São Roque, e, ao final, lançaram uma "Carta" recomendando aos juízes de Execuções Criminais que acolham os pedidos de progressão de regime carcerário formulados por sentenciados por crimes hediondos. Na ocasião o secretário Nagashi Furukawa disse que, só no primeiro semestre de 2005, teve de recolher 7,5 mil novos presos no sistema prisional estadual.

Com o mesmo objetivo, o ministro da Justiça já havia defendido, no ano passado, a revisão da Lei dos Crimes Hediondos. Segundo Márcio Thomaz Bastos, esse texto foi concebido às pressas, em 1990, após uma sucessão de crimes violentos na cidade do Rio de Janeiro, e não teve o efeito esperado. "O que se espera de uma lei penal é que os crimes ali citados diminuam pela eficiência dissuasória que ela mostra. Mas os crimes elencados nessa lei aumentaram desde que ela entrou em vigor", disse ele na ocasião.

Na realidade, o problema é de desinteresse dos governos. Como construir prisões não dá voto, quase todas as unidades da Federação - à honrosa exceção de São Paulo - até hoje continuam sem investir em novas unidades especiais para acolher condenados por crimes violentos. Com isso, criminosos primários passaram a conviver com bandidos violentos, o que converteu o congestionado sistema prisional brasileiro em fonte permanente de sangrentas rebeliões e em sedes inexpugnáveis de organizações criminosas. Entre 1995 e 2003, a população encarcerada aumentou de 148 mil para 308 mil e a estimativa é de que o déficit de 122 mil vagas dobrará, até 2006.

Por isso, a leniência da magistratura na aplicação da Lei de Crimes Hediondos é preocupante, pois as taxas de reincidência são altas e muitos dos favorecidos por suas decisões são bandidos perigosos. Além de desmoralizar quem os prendeu, essa estratégia para aliviar as prisões também dissemina confiança na impunidade, no mundo do crime, agravando ainda mais o problema da segurança pública. Em vez de recorrer a expedientes pragmáticos de duvidosa eficácia, o Executivo e o Judiciário deveriam formular, juntos, uma política responsável para evitar o colapso do nosso sistema prisional.