Título: Lula endossa a farsa
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Fonte: O Estado de São Paulo, 19/07/2005, Notas & Informações, p. A3

A estranha entrevista que o presidente Lula concedeu sexta-feira em Paris a uma produtora independente de TV, brasileira residente na França, e que a TV Globo levou ao ar domingo à noite, contém indícios fortíssimos de que foi concebida para chancelar, com a autoridade presidencial, as declarações do ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares, transmitidas no sábado à noite pela mesma emissora ¿ as quais, por sua vez, avalizam a entrevista do publicitário Marcos Valério Fernandes de Souza, divulgada na sexta-feira à noite, sempre pela mesma emissora. No que foi imediatamente apelidado Operação Paraguai, em alusão à mentirosa Operação Uruguai no governo Collor, Valério e Delúbio construíram uma versão claramente fantasiosa para desmentir o mensalão denunciado pelo deputado Roberto Jefferson e a corrupção no governo Lula que começou a aparecer no vídeo dos Correios.

Eles negaram uma coisa e outra. O que houve entre 2003 e até bem pouco foram apenas os empréstimos ¿pessoais¿ de Valério, ou intermediados por ele, coisa de R$ 39 milhões, com os quais Delúbio permitiu que os seus companheiros e os dos partidos da base aliada quitassem dívidas da campanha de 2002 e bancassem a de 2004.

Os empréstimos irrigaram o caixa 2 de candidatos a todos os cargos eletivos ¿ menos o de presidente da República ¿ do PT, PP, PL, PTB, PSB, PC do B e da ala governista do PMDB. Para não admitir delitos piores, como cobranças de propina, favorecimentos e contratos superfaturados na administração federal, além dos meios utilizados para a formação da base parlamentar do governo Lula, a dupla confessou a prática de um crime eleitoral presumivelmente cometido por políticos de todas as legendas ¿ o financiamento ilegal da disputa pelo voto popular.

O estratagema, a que decerto não ficou alheia a criatividade profissional dos criminalistas contratados por Valério e Delúbio, é provavelmente a defesa menos ruinosa ao seu alcance. Ao mesmo tempo, embute uma ameaça: se a oposição for longe demais nas investigações, tampouco sairá ilesa.

Não teria o ex-ministro José Dirceu dito que, se tiver de depor na CPI dos Correios, poderá ¿arrastar junto o Brasil¿? E não disse o presidente Lula em Paris que ¿o PT fez do ponto de vista eleitoral o que é feito no Brasil sistematicamente¿?

E não é absolutamente estranha a própria entrevista? De um lado, tem-se um presidente que, alegando estar no exterior, se negou a falar de assuntos domésticos aos jornalistas brasileiros que cobriam a visita e só quando assediado por um deles, que conseguiu atravessar o bloqueio armado ao seu redor, disse que ¿o Brasil não merece o que está acontecendo¿ (sem se dar conta do duplo sentido da frase).

De outro lado, tem-se um presidente que, pouco antes de voltar ao Brasil, aceita ser entrevistado para uma TV francesa indefinida por uma desconhecida free-lancer brasileira que conseguiu entrar no palácio onde ele se hospedava sem a companhia de um cinegrafista.

Depois, a delicada entrevista de 7 perguntas é comprada pela Rede Globo para exibição no Fantástico. Em suma, Lula escolheu uma forma de se dirigir aos brasileiros sobre a qual tinha absoluto controle e que não o sujeitaria ao risco de um embaraço. E isso para afirmar, em óbvia sintonia com Delúbio e Valério, que ¿o PT está sendo vítima do seu crescimento¿, que as atuais denúncias ¿não chegaram ao governo¿, que depois de ser eleito não pode mais participar das decisões do partido e que ¿a direção ficou muito enfraquecida¿ (porque os ¿melhores quadros¿ foram para o governo) e ¿possivelmente por isso cometemos erros que outrora não cometeríamos¿. É o caso de invocar o ditado do ¿pior a emenda¿.

Pois com essa entrevista Lula se associou pessoalmente a uma armação cuja fragilidade é gritante (daí o rótulo Operação Paraguai) e que será desmanchada, se não pela oposição, com certeza pela mídia ¿ para não falar na CPI. Daí não se infere necessariamente que o presidente tivesse parte com os escândalos.

A hipótese mais plausível é a de que ele aceitou ser ¿poupado dos detalhes¿. Se um governante precisa se esforçar para saber o que os seus colaboradores não querem que saiba, que dirá então quando dá a impressão de que não quer saber. No caso de Lula, a única dúvida é se agiu assim para se proteger ou por autêntico desinteresse em conhecer como funcionam as coisas no seu governo.