Título: Relações entre corrupção e sonegação
Autor: James Marins
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/07/2005, Espaço Aberto, p. A2

Casos espetaculares de corrupção e sonegação (mensalão, Schincariol, Daslu...) vêm sendo amplamente explorados pela mídia sem que nos demos adequada conta das íntimas relações entre eles. Em primeiro lugar, é preciso notar que compra de deputados ou fraudes tributárias são exatamente o mesmo fenômeno ¿ corrupção ¿, que atinge a integridade de pilares essenciais à estabilidade do Estado democrático. Tributação, governo e Parlamento são feitos de uma única matéria: a coisa pública. Todo pacto democrático está estruturado, economicamente, no consentimento dos cidadãos em entregar uma parcela de seu patrimônio e de seus rendimentos ao Estado, sob a forma de tributos. Esse consentimento parte do pressuposto de que essa parcela será gerida em prol do bem comum, da manutenção da coisa pública, e não do abastecimento de interesses particulares, privados, confessáveis ou inconfessáveis.

Corromper parlamentares, desviar verbas públicas ou sonegar tributos são práticas que alteram o equilíbrio desse pacto, de um lado, ao traírem a finalidade nuclear do Estado ¿ gerir por todos e para todos ¿ e, de outro, ao ferirem a noção de que todos os que podem devem contribuir para a manutenção do Estado.

Nesse ambiente em que se fraturam todos os paradigmas do convívio social, dá-se um assustador quadro de reciprocidades entre a corrupção pública e a sonegação fiscal, que se resume nos seguintes tópicos:

A clássica Psicologia Financeira, do italiano Amílcare Puviani, ensina, desde 1898, que a corrupção pública gera contra-impulso contributivo, isto é, os cidadãos contribuintes deixam de acreditar na necessidade de manter uma estrutura que se apresenta corrompida.

A sonegação ganha um determinado nível de ¿aval moral¿, por assim dizer, pois muitos se orgulham da desobediência às normas tributárias sob a alegação de que não entregam seu dinheiro para alimentar estruturas corruptas. Em paráfrase do texto do jurista alemão Klaus Tipke, é quase lugar-comum a declaração ¿não pago impostos para políticos corruptos¿, utilizada como pastilha de alívio da moral tributária. A sonegação passa, então, a ser elevada à categoria de ¿desobediência cidadã¿, quando, na verdade, é autêntica renúncia à própria cidadania.

Mais que isso: a informalidade tributária ¿ como lembra Oded Grajew, do Instituto Ethos ¿, embora privada, alimenta as redes de corrupção pública, pois vultosas ¿doações¿ a políticos, por grandes empresas ou mesmo pelo crime organizado, são sempre feitas à custa de ¿caixa 2¿, que é o fruto proibido da sonegação.

Logo, a sonegação infiltra-se em importante parcela da vida pública, pois seu fluxo de recursos ilegais elege incontáveis parlamentares e membros do Executivo em todas as esferas, a ponto de que mesmo os melhores homens públicos parecem tolerar caixas ilegais de campanha, sob pena de não se elegerem.

Em contrapartida, técnicos fiscais dos governos, para vencer a sonegação, adotam duas ordens de ação, uma verticalizando o ônus tributário e fazendo incidir tributos sobre quem não pode escapar, como os assalariados e os servidores públicos, e outra criando ¿megaoperações¿ de combate à sonegação.

Ao sobrecarregar assalariados e servidores públicos, gera-se mais distorção no pacto democrático, uma vez que se cobram cada vez mais tributos de quem menos pode e se gera forte insatisfação popular e mais aval à sonegação, à pirataria, ao subterfúgio do ¿com nota ou sem nota?¿.

Já as megaoperações fisco-policiais têm por evidente propósito restaurar ¿ com a pedagogia da força ¿ o combalido impulso contributivo, instalando-se um certo ambiente de terrorismo fiscal, ornado com a prisão midiática de empresários de colarinhos e cabelos brancos, que são arrancados ¿à bala¿ de suas residências, muitas vezes de modo escancaradamente desnecessário.

Todos sabemos que a corrupção pública e privada não aumentou nem diminuiu, embora nos seja angustiante admitir o que sempre soubemos, mas permanecia dissimulado pelo lenitivo da dúvida, atenuado pelo falso conforto da ignorância, encoberto pelo palco das ilusões. Ainda assim, são largamente preferíveis a diagnose e o combate doloroso à corrosão encoberta e sinistra das estruturas de nossa sociedade.

A exposição do nauseante quadro público-privado choca, CPIs e operações policiais demasiado aparatosas agridem nosso senso de justiça, mas a catarse ¿ a tragédia pública ¿ é necessária, enquanto veículo da purificação moral por que clama a democracia brasileira.

Acima disso, esse clima de inversão dos paradigmas da democracia ¿ renúncia à cidadania ¿ precisa ser combatido pela sociedade civil, responsável pelo futuro de nosso país, retomando-se o pulso e o controle das instituições políticas, não apenas por meio das urnas, mas da participação cotidiana, de cada um, nos processos decisórios, por intermédio de entidades civis, de universidades, de organizações sociais não-partidárias ¿ as ONGs de toda natureza, que se organizem como um contramovimento ao esfacelamento da credibilidade pública.

A restauração e a relegitimação das relações sadias entre o público e o privado, entre o Estado e o cidadão contribuinte, a reintegração dos frangalhos da cidadania pela distribuição justa da carga fiscal e da cobrança efetiva de um programa justo de gastos públicos são mais que um mero imperativo socioeconômico e muito mais que pura utopia acadêmica, mas necessário projeto de vida, de construção de um país.