Título: Mistura fina
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/07/2005, Nacional, p. A6

Por descuido ou insolência, PT e governo deixaram pistas que agora os incriminam O maior obstáculo à credibilidade da versão segundo a qual governo e PT são duas entidades distintas e que os malfeitos do partido guardam léguas de distância do Palácio do Planalto é a própria convivência de ambos nestes dois anos e sete meses desde a posse do presidente Luiz Inácio da Silva.

As condutas de dirigentes partidários e de autoridades públicas produziram ao longo desse período uma quantidade tão grande de provas, deixaram tantas pistas, que hoje elas contrariam a tese da defesa das denúncias de corrupção, sustentada na separação entre um e outro.

São inúmeros os casos de prova em contrário.

A começar pelo gesto do presidente da República de comparecer a um encontro com o presidente dos Estados Unidos levando na lapela do terno a estrela do partido, passando pela transposição do símbolo para os jardins do Alvorada, empréstimos facilitados do Banco do Brasil para informatização do PT, patrocínio de shows de arrecadação para a construção de uma nova sede e o trânsito francamente desenvolto de dirigentes partidários na estrutura governamental.

Exemplo eloqüente da promiscuidade entre o governo e o partido materializou-se outra vez ontem na CPI dos Correios.

O ex-secretário-geral Silvio Pereira omitiu-se a respeito de quase tudo o que lhe foi perguntado, mas não pôde negar que, na condição de dirigente partidário, atuou na posição de ponta de lança da organização do loteamento dos cargos disponíveis na estrutura do Estado.

Fez bem, aliás, em confirmar, porque hoje o ex-tesoureiro do partido Delúbio Soares estará na mesma cadeira diante da CPI e, se repetir o que dizia em outros tempos, poderia derrubar eventuais negativas a respeito da fina mistura.

Em entrevista à revista Época um ano atrás, Delúbio não apenas falou sobre essas relações estreitas como até as defendeu.

Vale a reprodução de trechos, alguns flagrantemente contraditórios em relação à versão dos fatos fornecida por Delúbio Soares e Marcos Valério de Souza e avalizada pelo presidente Lula.

"Política no Brasil é partidária. Na hora da eleição todos acham que é natural que o partido organize e proporcione condições para um candidato ganhar. Para ganhar serve, mas para governar os partidos não servem? Nós achamos diferente. A experiência do PT mostra que onde há sintonia fina a coisa funciona melhor", dizia Delúbio, para contraditar os que viam risco na mistura.

A revista quis então saber de Delúbio, cujas andanças no Palácio do Planalto já haviam sido abordadas no início da entrevista, se quando ia na sede do governo o tesoureiro se reunia com ministros para tratar de questões partidárias.

"Sim. Depois de nomeado o primeiro escalão, o Silvio Pereira, o José Genoino e eu formamos uma comissão de composição de governo. Sempre que alguém era indicado tínhamos de consultar o currículo da pessoa e conversar com os ministros."

Em seguida, sobre suas visitas ao então ministro dos Transportes, Delúbio Soares explicou: "Tratávamos de assuntos que nos interessavam. Por exemplo, um perfil da malha de transportes brasileira, idéias para médio prazo."

Sobre suas relações com o então ministro José Dirceu: "Falam que eu converso muito com ele. Claro que converso. Eu e o Zé Dirceu assinávamos juntos cheques da campanha, cheques do partido, durante anos e anos. A responsabilidade minha era do tamanho da dele nas finanças do partido."

Sobre o exercício simultâneo das atividades de tesoureiro do partido, freqüentador com trânsito livre no Planalto e interlocutor de empresários: "Eu visito empresas. Fui a duas grandes no ano passado (2003). No estaleiro Itajaí encontrei um empresário que tinha pedido para dar o nome da primeira-dama a um navio, não tinha acesso ao Palácio e não estava conseguindo nada por intermédio de deputados."

Delúbio aí relata que encontrou Marisa Letícia da Silva e pediu: "Primeira-dama, vá à inauguração, é importantíssimo". Ela foi.

"E por que era importante que fosse"?

"Porque o setor naval no Brasil tem de crescer. Eu agi da mesma forma na Usiminas. Fui visitar a siderúrgica com o Genoino e ficamos lá o dia inteiro conversando, conhecendo como são as empresas de produção de aço. Como dirigente do partido mais importante do País tenho de conhecer o setor produtivo."

Sobre finanças e ajuda a aliados, a revista afirma - e Delúbio não contesta - que "o PT está muito bem de dinheiro" e pergunta se é verdade que o partido "ajuda alguns aliados com recursos".

Contrariando a versão atual, Delúbio diz que não. "Somos aliados e amigos, mas cada um vai cuidar do seu pedaço."

Da mesma forma, nega peremptoriamente a existência de caixa 2 no PT. Segundo ele, "nunca" teria havido sequer oferecimento de doações "por fora". "Fui o responsável pela última campanha (de presidente) e não houve nenhuma denúncia, fizemos um trabalho transparente."

Essa é a lógica que preside as ações e reações do PT. Se não há denúncia, não há nada demais em transgredir.

Como disse o mesmo Delúbio quando em 2004 o diretório nacional do PT estava para aprovar a exibição das contas das campanhas do partido na internet: "Transparência assim é burrice."