Título: Crise política e reforma do Estado
Autor: Josef Barat
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/06/2005, Economia & Negócios, p. B2

O depoimento do deputado federal Roberto Jefferson no Conselho de Ética da Câmara deixou a Nação estarrecida com a exibição crua da promiscuidade das relações entre o Executivo e o Legislativo, abrigadas sob o epíteto em voga de "presidencialismo de coalizão". O deputado explicou em linguagem rude, mas com clareza, os mecanismos de cooptação de parlamentares, as formas de consolidação de alianças para se obter maioria e a subordinação do Legislativo aos desígnios do Executivo. Mostrou, também, que a recíproca é verdadeira, na medida em que parlamentares capturam e dominam setores da administração pública de acordo com seus interesses. Neste sentido, o depoimento foi um fato político da maior importância, que conduzirá, cedo ou tarde, à reforma do sistema político. Se os governos militares venciam as votações no Congresso freqüentemente pela intimidação, os governos civis faziam-no pela facilidade de cooptar partidos por meios nem sempre recomendáveis. E, diga-se de passagem, ousando mais na imposição de medidas provisórias. Mas falar de reforma política sem a necessária e paralela reforma do Estado brasileiro é ver a crise de forma míope. Isto porque temos hoje um Estado dissociado das reais necessidades da sociedade, ou seja, funcionalmente incapaz de atender aos anseios dos que trabalham, produzem e pagam tributos. O Congresso Nacional, atrelado, desde há muito, aos objetivos do Executivo, não participa da formulação de estratégias de desenvolvimento, de diretrizes para a implementação de políticas públicas e da consolidação de planos que tenham um mínimo de visão coordenada da realidade do País. Seus interesses são paroquiais, assistencialistas e circunscritos a uma visão, quando muito, regional. O Judiciário, enredado numa teia de burocracia ibérica barroca, constitui, freqüentemente, um entrave ao desempenho de uma moderna economia industrial e de uma sociedade altamente urbanizada. O Executivo, por sua vez, perdeu a característica desenvolvimentista e modernizadora, conservando a porção assistencialista ancorada no patrimonialismo. Trocou, nas duas últimas décadas, o papel de grande investidor nas infra-estruturas pelo de medíocre distribuidor de cestas básicas.

Vendo a questão pela perspectiva da fragilidade estrutural do Executivo, a economia política da corrupção poderia ser resumida e simbolizada num triângulo. Este, ao contrário de certas visões espirituais e místicas, representa as relações perversas entre os vértices: o Executivo, o Legislativo e os interesses privados ou corporativistas. Explicando melhor: 1) Parlamentares necessitam de recursos para as suas campanhas, cada vez mais caras e competitivas; 2) doadores privados apresentam-se para dar sustentação financeira e viabilizar a eleição dos candidatos escolhidos; 3) uma vez eleitos, os parlamentares indicam pessoas a eles vinculadas para exercer funções gratificadas no Executivo; 4) os financiadores capturam segmentos da administração pública para atender aos seus interesses privados. Com isto se fecha a triangulação perversa, que perpetua a tradição histórica de pôr o Estado como refém das manipulações em proveito de setores privados ou ligados a corporativismos anacrônicos.

Reformar o Estado brasileiro significa hoje restringir drasticamente a amplitude do espaço para as negociações triangulares. A questão não é somente do tamanho do Estado, mas sim da sua funcionalidade. Ficando no Executivo, é óbvio que quase 40 ministérios e milhares de funções de confiança desnecessárias são fatores de ineficiência e ampliação do espaço de triangulação. Por outro lado, acrescenta-se ainda mais espaço ao se atrelar as agências reguladoras a interesses políticos ou empresariais - tirando-lhes a independência -, assim como ao se negociar cargos nas empresas estatais mais eficientes em função de objetivos eleitorais. Além de conter as triangulações perversas, é importante, ainda, desenvolver uma instrumentação moderna de gestão pública, com uma elite técnica treinada, para devolver ao Executivo a sua capacidade de pensar, formular, planejar e agir, de acordo com os mais legítimos interesses da Nação. Nunca é ocioso lembrar que, no passado, já tivemos sinais de vida inteligente na administração pública e uma significativa parcela de executivos de sucesso no setor privado foi formada no Executivo.