Título: Brasil começa a quebrar patente de anti-retroviral
Autor: Lígia Formenti
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/06/2005, Vida&, p. A23

Humberto Costa dá o primeiro passo e assina declaração de interesse público pelo Kaletra, remédio do laboratório Abbott

Depois de mais de três meses de negociação e muita expectativa de organizações não-governamentais e organismos internacionais, o Brasil deu o primeiro passo para a quebra de patente de um medicamento usado no tratamento de aids. Ontem, o ministro da Saúde, Humberto Costa, assinou uma declaração de interesse público pelo Kaletra, anti-retroviral produzido pelo laboratório Abbott e consumido por quase 23.500 pessoas no País. Se concretizada, esta será a primeira vez que um país declara a licença compulsória de um remédio antiaids. A economia do governo seria de US$ 130 milhões anuais O processo de quebra somente será interrompido caso o Abbott concorde, em dez dias, em reduzir o preço do medicamento para US$ 0,68 por unidade. Isso é o quanto o Brasil estima gastar na produção nacional do remédio. A intenção é que o Kaletra, um combinado dos medicamentos lopinavir e ritonavir, seja produzido na nova fábrica da Farmanguinhos, no Rio, num prazo de um ano. Até lá, o Brasil continuaria adquirindo o produto do Abbott - cumprindo assim um contrato de compra, que termina em maio.

Em nota oficial, o Abbott informou estar "extremamente desapontado" pelo fato de o governo iniciar o processo para licença compulsória. Mas afirmou estar disposto a negociar com o governo para chegar a um ponto comum.

A medida anunciada ontem por Costa, em cerimônia no Palácio do Planalto e com a presença do presidente Lula, é o último ato de uma novela que começou em março, quando o ministro enviou uma carta para laboratórios produtores dos três medicamentos mais caros usados no coquetel de aids, questionando o interesse em negociar uma licença voluntária das drogas. Além do Abbott, receberam a carta o Merck Sharp e o Gilead. Desde o início, o Abbott informou não ter interesse em negociar a licença. Os outros continuam em negociação.

Costa, no entanto, não informou como andam os entendimentos com os demais laboratórios. "Não temos interesse nenhum em quebrar patente. Nossa preocupação é garantir o fornecimento dos remédios antiaids para pacientes", disse. "Com os demais laboratórios, vamos levar a discussão. Mas, a exemplo do Kaletra, não hesitaremos em quebrar a patente, caso um acordo seja impossível." Os três medicamentos, juntos, respondem por cerca de 60% dos custos que o programa tem com a aquisição de remédios para pacientes com HIV.

TÍMIDA

A decisão do ministério, no entanto, foi considerada tímida por alguns integrantes do próprio governo. Para eles, não havia necessidade de o País dar um prazo de dez dias para o Abbott. A medida, dizem, é zelo excessivo que poderia dar margem para o laboratório se defender e atacar o País na Justiça.

Até hoje apenas dois medicamentos no mundo tiveram a patente quebrada. Há alguns meses, a China quebrou a patente do Viagra. Os Estados Unidos, logo depois do episódio do 11 de setembro, declarou a licença voluntária de medicamentos para tratar infecções pelo antraz.

O Brasil falou pela primeira vez em quebra de patente em agosto de 2001. Na época, o então ministro da Saúde, José Serra, ameaçou declarar a licença compulsória do Nelfinavir. Diante da ameaça, o preço do remédio foi reduzido e a patente, preservada. Nos últimos anos, o Brasil recorreu a esse artifício novamente, todas as vezes em que se aproximava a negociação do preço dos medicamentos.

Ano passado, o Kaletra teve redução de preços considerada inadequada pelo ministério. Hoje, a unidade do produto custa US$ 1,17. Desde que o medicamento começou a ser usado no País, em 2001, o preço teve uma redução de 25%. Neste período, o número de pacientes cresceu sete vezes, disse Costa. "O laboratório mostrou-se irredutível", disse o ministro.

Costa lembra que a declaração de licença compulsória está amparada na legislação internacional e nacional. "O interesse público vem em primeiro lugar", disse. "Estamos respaldados no Trips (acordo sobre aspectos de direito de propriedade intelectual) e na Declaração de Doha." Ele não descarta a possibilidade de que o laboratório questione na Justiça a legalidade da ação. E que o assunto seja levado também à Organização Mundial do Comércio (OMC). "Estamos tranqüilos, respaldados."

No comunicado, a Abbott inicia uma estratégia que há tempos já vem sendo alinhavada: questionar a qualidade dos medicamentos eventualmente produzidos pela farmácia nacional. "Este anúncio não leva em consideração o que é melhor para os pacientes brasileiros, porque prioriza o desejo do governo em cortar custos da área de sáude, em vez da necessidade do paciente por novos e melhores tratamentos", di o texto. A Abbott lembra ainda que o Brasil recebe o Kaletra pelo preço mais baixo do mundo - com exceção do preço dos programas de acesso humanitário na África.

Para ONGs, o anúncio foi recebido com aplausos. "O ministério demorou muito a tomar tal decisão. Embora tardia, ela é bem-vinda. Esparamos, apenas, que ela não fique apenas numa droga", afirmou Mário Scheffer, do Forum de Ongs de Aids. Em maio, mas de 300 ONGs enviaram um manifesto para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva requisitando a quebra de patentes. No documento, as ONGs comparavam a atitude do governo a um tigre sem dentes, que tinha posição ofensiva nos organismos internacionais e uma atitude tímida, no País.