Título: Blindá-lo? Não dá mais
Autor: Mauro Chaves
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/06/2005, Espaço Aberto, p. A2
Não dava para exigir que ele tivesse o preparo mínimo que costumamos exigir quando contratamos um funcionário ¿ obviamente, de acordo com o tamanho das responsabilidades que deva assumir. Afinal de contas, ele não teve grande oportunidade educacional na origem ¿ embora a tivesse (sem aproveitar) nos muitos anos posteriores. De qualquer jeito, poderiam dizer que exigir esse preparo seria preconceito. Mas talvez a notória deficiência de escolaridade fosse bem compensada por uma intuição aguda, ou pelo poder de uma inteligência extraordinária, capaz de captar as verdadeiras necessidades das pessoas. Não dava para exigir que ele tivesse experiência administrativa. Afinal de contas, quem lhe dera oportunidade de adquiri-la? É verdade que ele até pretendeu, por três vezes, candidatar-se a prefeito de São Bernardo, para adquirir alguma experiência. Mas o partido não deixou. Seria um risco de desgaste que não valeria a pena correr, aquele que simbolizava a conquista histórica de uma classe social, a ruptura antológica de um privilégio das elites.
Assim, seria uma generosidade cívica relevar lacunas mentais, impropriedades verbais e confusões comportamentais de quem tinha, como compensação, um resplandecente carisma pessoal, capaz de empolgar as massas dizendo e repetindo coisas simples, óbvias, batidos bordões ¿ mas eivados de emoção. E até a transformação do tom crítico e contundente na adocicada maciez do ¿paz e amor¿ foi absorvida com entusiasmo, visto que quebrava alguns tabus ideológicos e convencia a ¿esperança¿ a ¿vencer o medo¿.
Chegado ao poder maior, chocava aquela sua falta de respeito à própria majestade do cargo ¿ mas no fundo ela significava a autêntica espontaneidade popular, elevada ao poder supremo da Nação, depois de muitos séculos de dominação elitista.
Chocava, ainda mais, aquele seu deslumbramento pelas coisas ótimas que o grande poder oferece, em termos de bebidas, comidas, festas, recepções, agrados, beija-mãos, jogos, viagens, passeios, avião com chuveiro (luxo desconhecido pelos maiores estadistas do mundo), estrela vermelha de plantas no gramado residencial e tantas, tantas extravaganciazinhas mais. Mas, afinal de contas, não é normal o ser humano gostar de coisas boas (mesmo de mau gosto)? E, em sã consciência, quem não aprecia a descontração, o agrado, o conforto, as amenidades dos festejos ¿ extensivos à família ¿, especialmente quando não tem de arcar com custo algum por tais benesses?
Compreendia-se sua grande dificuldade de entender os assuntos em profundidade ¿ nem sempre a capacidade de reflexão depende da ¿vontade política¿ ¿, sua ojeriza a problemas complicados, bem como sua hesitação crônica (fruto da extensa inexperiência) em agir e tomar decisões. Contemporizava-se, com a maior boa vontade, ante a evidência ¿ demonstrada logo nos primeiros meses de gestão ¿ de sua incapacidade coordenadora, que tornava seus principais auxiliares (com as honrosas exceções de praxe) habitantes de um caótico balaio de gatos, com excesso de miados desarmônicos.
Tudo isso se compreendia ¿ tout comprendre c¿est tout pardonner ¿ e relevava, pois, afinal de contas, estava-se diante de uma nova e marcante experiência de mobilidade social e alternância estrutural do poder, destinada a aprimorar, decisivamente, nossa quase já plena democracia ¿ mesmo que certos recrudescimentos de autoritarismo pudessem ser vislumbrados, em face do comportamento dos que exageravam em seus próprios prognósticos de permanência no poder. Mas a crise tem razões que a razão da complacência desconhece. Por sobre tudo o que se dissesse quanto à incompetência administrativa, à incapacidade de articulação política, ao descumprimento de promessas, aos fracassos de programas ¿ como o que tem zerado não a fome, mas a esperança de combatê-la ¿ e tantos outros decepcionantes descaminhos, permanecia uma crença na qualidade moral dos que chegaram para dar posse à sua altaneira bandeira da ética na política ¿ que haveria de tremular com seus princípios indeléveis, renovadores, firmes protetores da coisa pública, fixados há um quarto de século.
E o que aconteceu, começou a deteriorar-se com velocidade impensável ¿ e imprevisível ¿, como um câncer que se vai tornando descontrolada metástase e destruindo inteiramente a estrutura moral do poder, levando a sociedade a sentir que está sendo conduzida por um exército de bandidos, esparramados por todos os Poderes da República? A corrupção profundamente institucionalizada, fazendo jorrar um tsunami de lama de dentro do coração ¿ ou do estômago ¿ do poder maior, sem mais nenhuma possibilidade de ser escondida, disfarçada, camuflada ou jogada na vala comum das nossas tradições patrimonialistas, expressa na cínica obviedade de que ¿sempre houve corrupção aqui e em todo lugar do mundo¿ ¿ verdade essa que, sendo agora invocada, apenas reflete um abjeto oportunismo, preconizador disfarçado de uma espécie de ¿direito adquirido¿, histórico, da impunidade brasileira.
Enquanto vão pipocando, em inúmeros setores, os indícios mais evidentes das pesadas falcatruas, os suspeitíssimos limitam-se a repetir, pausada e escandidamente, frases que debocham da inteligência nacional, do tipo: ¿Eu não sou o homem da mala.¿ Ou: ¿Não se rouba nem se deixa roubar.¿ Ou: ¿Nunca ouvi falar de mensalão.¿ Ou: ¿Sou o mais ético do Brasil.¿ Os únicos argumentos, no caso, são a pausa e a entonação (que pretendem representar convicção e indignação).
Quanto ao chefe de todos, que nomeia os maiorais ¿ que perpetravam as cabeludas bandalheiras quase em sua ante-sala ¿, de duas, uma: se sabia, é criminoso inafiançável; se não sabia, é incapaz inimputável. Blindá-lo? Não dá mais. Dará para mantê-lo?