Título: O mundo na visão de Hugo Chávez
Autor: Monte Reel
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/07/2005, Internacional, p. A18

Depois que o rumor dos tanques morreu e o último soldado passou marchando pelo pavilhão dos espectadores, o presidente Hugo Chávez disse às milhares de pessoas que compareceram à parada do Dia da Independência, em 5 de julho, que nenhum exército invasor poderia se igualar àquele que havia acabado de marchar, "armado até os dentes". A hipotética invasão que ele invocou era clara. Dois dias antes, Chávez anunciou a descoberta de provas de que os EUA haviam planejado invadir a Venezuela, um plano que, segundo ele, foi apelidado de Operação Balboa. Funcionários americanos classificaram a acusação como ficção, assim como negaram as repetidas afirmações de Chávez de que a CIA está tentando assassiná-lo, ou de que o governo Bush estava por trás do golpe militar que por um breve momento o destituiu do governo em abril de 2002. Não há dúvidas, no entanto, que as relações entre a Venezuela e os EUA, estremecidas durante anos, está decaindo novamente.

Chávez sempre condenou abertamente o que chama de "imperialismo americano", apelidando o presidente Bush como "Sr. Perigo" e o Secretário de Defesa Donald Rumsfeld como "Sr. Guerra". Mas funcionários venezuelanos insistem que suas recentes ameaças de cortar relações com Washington - o que causaria a suspensão da exportação de 1,5 milhão de barris de petróleo por dia - são mais do que a mera retórica de um populista.

"Quando o presidente fala, não é uma piada", disse Mary Pili Hernandez, funcionária do alto escalão do ministério de Relações Exteriores. "O único país com o qual a Venezuela tem relações ruins são os EUA. Com todos os outros países, temos boas ou muito boas relações. Mas com uma única palavra, os EUA poderiam resolver todos os problemas. Essa palavra é 'respeito'." Chávez afirma que o equivalente à Guerra Fria do século 21 é a sede do mundo desenvolvido por petróleo - e sua tentativa de manipular governos mais fracos para garanti-lo. A Venezuela, que é rica em petróleo, vende entre 60% e 65% de seu óleo cru para os EUA, fazendo do país o quarto maior fornecedor do mercado americano. Este ano, altas quase recordes dos preços do petróleo ajudaram Chávez a financiar uma variedade de programas sociais que ele promete vão tornar o país mais independente da influência americana.

Observadores dizem que a renda do petróleo potencializou a estratégia de Chávez na área externa. Recentemente, ele assinou acordos com Argentina, Brasil e seus vizinhos caribenhos e lançou esforços para fortalecer laços com a China através do petróleo.

Rafael Quiroz, um analista da indústria de petróleo em Caracas, disse que o governo Chávez acredita que o conflito entre países em desenvolvimento abençoados com essas riquezas naturais e países com altas demandas só vai se intensificar nos próximos anos. Chávez quer precipitar esse conflito, disse Quiroz.

"Acho que ele está correto em tentar acelerar esse tipo de confronto, porque o mundo em desenvolvimento - onde 85% das reservas mundiais estão - vai ficar muito melhor depois disso", disse Quiroz. "É evidente que o petróleo é fundamental para a política externa da Venezuela. Trata-se do principal ingrediente para formar alianças estratégicas." A Venezuela poderia encontrar outros compradores e os EUA poderiam encontrar outros fornecedores, mas ambos têm grandes incentivos financeiros para manter o atual acordo. Se a Venezuela cortar o fornecimento, os EUA provavelmente teriam que pagar mais para suprir a falta, elevando os preços.

A Venezuela também sofreria por causa dos altos custos de remessa e infra-estrutura, segundo funcionários americanos. Há hoje cinco refinarias nos EUA especificamente aparelhadas para processar a variedade venezuelana de óleo cru. Nenhum outro país é tão bem equipado, disse o funcionário. "Seria uma ruptura, mas no fim das contas nenhum outro país pode controlar o mercado internacional", disse William R. Brownfield, embaixador americano na Venezuela.

Funcionários americanos também reclamaram de dificuldades nos esforços contra o tráfico de drogas. No começo deste ano, a Guarda Nacional Venezuelana confiscou equipamento da força-tarefa antidroga colombiana, que trabalha diretamente com os EUA. E no mês passado, o chefe do esquadrão antidroga da Venezuela - cujos agentes internacionais eram considerados muito solícitos - foi demitido.

Autoridades venezuelanas reagem à sugestão de que não estão cooperando em questões de policiamento. Eles argumentam que o governo americano tem dois pesos e duas medidas. Apontam particularmente o caso de Luís Posada Carriles, ex-agente da CIA que participou da fracassada invasão da Baía dos Porcos, em 1961. Cidadão naturalizado venezuelano hoje em uma prisão do Texas sob acusações de imigração, Posada, 77 anos, foi acusado de atacar um avião cubano, em 1976, matando os 73 passageiros à bordo. Foi preso na Venezuela sob acusação de ser terrorista, mas escapou da prisão em 1985.

Depois de se envolver com uma rede administrada pelo ex-assessor da Casa Branca, Oliver L. North, para contrabandear armas para rebeldes oposicionistas na Nicarágua e de uma suposta tentativa de assassinato contra o presidente cubano, Fidel Castro, pela qual ele foi preso no Panamá, Posada foi visto em Miami no início deste ano. Funcionários americanos indicaram que não sabiam de seu paradeiro, mas em maio, depois de ser entrevistado pelo jornal americano Miami Herald, ele foi preso e mandado para uma penitenciária em El Paso.

Agora, está pedindo asilo para protegê-lo de um pedido de extradição para a Venezuela. Ele enfrenta uma audiência em agosto. O caso Posada é complexo como um romance de espionagem, mas as autoridades venezuelanas dizem que se trata do seguinte: se os EUA falam sério sobre promover uma guerra contra o terrorismo, deveriam extraditar Posada - que comparam a Osama bin Laden - para enfrentar a justiça no ataque ao avião cubano.

"Se vocês têm um presidente que fala o tempo todo sobre a importância de combater o terrorismo", disse Hernandez, funcionário do ministério de Relações Exteriores, "não entendemos" a relutância dos EUA em extraditar Posada. "A principal razão disso é fazer justiça às famílias de 73 pessoas que morreram." Os advogados de Posada afirmam essencialmente que ele foi absolvido duas vezes - primeiro, por uma corte militar venezuelana, depois por uma corte civil que não conseguiu condená-lo. Seu advogado aqui, um ex-funcionário da inteligência chamado Joaquin Chaffardet, foi indiciado, mas nunca condenado, por supostamente ter organizado a fuga de Posada.

"Eu justifico plenamente essa decisão", disse Chaffardet da fuga da Posada, acrescentando que ele estava convencido de que Posada nunca teria um julgamento justo na Venezuela. "Não é justo fazer alguém esperar nove anos por um julgamento depois de já ter sido absolvido." As autoridades venezuelanas dizem que o caso civil contra Posada ainda estava andando quando ele escapou. Os defensores de Posada insistem que o pedido de extradição venezuelana não tem nada a ver com levar um terrorista para a justiça. Eles dizem que Chávez simplesmente está usando o caso contra os EUA.

Os oponentes políticos de Chávez também criticaram as repetidas afirmações do presidente de que a CIA está por trás de um plano para assassiná-lo. Em 24 de junho, o governo cancelou uma parada militar anual, citando relatos de um plano de assassinato contra Chávez. No Dia da Independência, ele assistiu a uma parada da recém-formada força da reserva, que ele espera que chegue a 2 milhões de leais defensores. Um grupo de legisladores da oposição calcula que Chávez aumentou a verba de sua própria segurança em 673% nos últimos seis anos.

As preocupações com a segurança não surpreendem, já que ele foi temporariamente derrubado por um golpe há três anos. No começo deste mês, um juiz determinou que o grupo de oposição do Sumate - acusado de aceitar US$ 31 mil do National Endowment for Democracy, entidade financiada pelos EUA - deve ser julgado por seu suposto papel em incitar o golpe.

Um dos membros do grupo, Maria Corina Machado, também é acusada de rebelião civil por seu papel no governo que substituiu Chávez por dois dias, até que os legalistas o devolveram ao poder. Em maio, Bush se encontrou com Maria na Casa Branca, uma manobra que enfureceu Chávez.

No começo do mês, um porta-voz do Departamento de Estado defendeu o Sumate, dizendo que o grupo se dedica a educar os eleitores e encorajar a democracia. "As ações judiciais que estão sendo tomadas aqui são, da nossa perspectiva, simplesmente parte de uma campanha do governo venezuelano desenhada para intimidar os membros da sociedade civil e evitar que exerçam seus direitos democráticos", disse Tom Casey, porta-voz do Departamento de Estado, no dia 8 de julho.

Funcionários americanos dizem que a atmosfera entre os dois países está tão viciada que não há remédio simples para acabar com o problema. "Não vamos sair da cabeça dele", disse a respeito de Chávez um funcionário do alto escalão americano. "Estamos falando de um homem que passou a vida adulta inteira em confronto com algo. Não é uma questão de se vamos ter ou não uma relação negativa com ele."