Título: Crise na União Européia
Autor: Gilberto Dupas
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/06/2005, Espaço Aberto, p. A2

W. Bush e Tony Blair foram os grandes beneficiados com a vitória do não à Constituição na França e na Holanda. O impasse político decorrente e a crise econômica que se aprofunda na região deixam em suspenso o futuro da União Européia. Blair foi conduzido, com ressalvas, a um inédito terceiro mandato. Mas, enquanto a Europa se aproxima de uma recessão, a Inglaterra resiste, mantendo-se fora da moeda única: tem a menor taxa de desemprego e de inflação dos últimos 30 anos, a mais baixa taxa de juros em quatro décadas e cresce de maneira estável há oito anos. O mutismo de Blair antes da decisiva votação francesa se explica: a vitória do não abalou importantes fundamentos, dispensando-o de se expor a convocar o referendo inglês e lhe permitindo saborear sua semidissidência européia.

Ele se tem mostrado um mestre da sobrevivência e feito apostas inteligentes alinhadas com o poder americano, de quem é ponta-de-lança na Europa.

Na Alemanha, o chanceler Schroeder contou com a sorte de que a Carta do país não previa consulta pública. A aprovação indireta da Constituição por grande maioria do Parlamento trouxe alívio, mas gerou críticas de que não houve debate e participação popular.

Para complicar, Condoleezza Rice arrasou as pretensões germânicas a uma cadeira de membro permanente no Conselho de Segurança da ONU, ironizando que a Europa ¿já tem uma política externa comum¿ e, portanto, o país já está representado por Inglaterra e França.

Seguiu-se a pesada derrota de Schroeder nas eleições na Renânia do Norte-Vestfália, o Estado mais populoso e reduto do Partido Social-Democrata há 39 anos. Somado ao difícil quadro econômico do país, que está tecnicamente em recessão com dois trimestres consecutivos de resultados negativos do PIB, esse fato pode levar à antecipação das eleições gerais; o objetivo seria recuperar legitimidade necessária à votação de duras reformas que, embora tenham pouco respaldo social, são consideradas indispensáveis para a recuperação do país.

Com isso o social-democrata Schroeder pode perder seu lugar para a democrata-cristã Angela Merkel, política jovem que vem do Leste. Essa hipótese não desagrada sequer aos social-democratas, já que o ¿trabalho sujo¿ de reduzir direitos trabalhistas e sociais ¿ considerado inevitável ¿ seria feito por seus opositores.

Na França, a vitória do não desafiou suas lideranças e atingiu a legitimidade do país na União. Ainda assim, Alain Touraine acha que esse veto foi mais social que político, mais francês que europeu. Votou-se contra o medo de rebaixamento dos salários, contra o aumento da desigualdade, contra a invasão dos poloneses e turcos, contra a idéia de uma Europa cada vez mais liberal e menos social. Mas os efeitos no governo Chirac são devastadores, obrigando-o a dar amplo espaço a um liberal radical, Nicolas Sarkozy.

A esquerda, carente de propostas alternativas, tentará ressuscitar um neomiterrandismo em torno de Laurent Fabius, o que também não é fácil. Em princípio, a rejeição da Constituição em alguns países do bloco europeu não a inviabiliza. Nada impede que se vote de novo, como já ocorreu na Dinamarca e na Irlanda quando dos referendos sobre os Tratados de Maastricht e Nice. Mas nada agora é simples.

Uma segunda derrota significaria encarar a decisão eventual de sair da União.

Finalmente, não bastassem problemas na Alemanha e na França, também surgem dificuldades em três outros grandes países europeus. O ¿milagre¿ espanhol dá sinais de que chegou ao fim. Os investimentos estrangeiros estão caindo, o déficit em conta corrente segue em alta, a inflação sobe e o modelo de baixos salários para atrair investimentos não funciona mais com a concorrência do Leste Europeu e da Ásia. A Itália também entrou oficialmente em recessão em maio, o que já ocorria na Holanda. Além do mais, recomeçam cochichos a portas fechadas sobre as limitações que a moeda comum impõe a economias tão diferentes.

O que falhou, afinal? A Carta rejeitada na França e na Holanda não é num arcabouço cristalino de normas básicas para a União; é mais um cipoal confuso de tratados internacionais e detalhes inúteis, como a determinação de que o hino oficial será a abertura da Nona de Beethoven. O cidadão comum nem chegou a debater por que esta Constituição é fundamental.

Quer-se uma Europa capaz de atuar politicamente nos planos interno e externo? Precisa-se de um aprofundamento ou de um alargamento até a Turquia?

A Europa deve acumular força para influir no regime econômico internacional ou não? Agora, a derrota abortou o debate. Habermas lembra que a Europa está minada pelos interesses conflitantes dos seus membros mais ricos e mais pobres, mais antigos e mais recentes; e que, durante décadas, os políticos europeus se esquivaram da discussão pública sobre as razões profundas da unificação européia.

Eles varreram a sujeira para debaixo do tapete e agora o eleitor a joga na cara deles. Afinal, o europeu está disposto a constituir-se numa alternativa aos valores norte-americanos e a pagar o preço por isso, ou simplesmente quer viver em paz com as regalias dos seus Estados de bem-estar social? Sentindo-se pouco representados, os cidadãos tiveram bons motivos para dizer que não querem desse jeito. Se há um outro jeito, cabe à classe política juntar seus cacos e tentar responder.

Enquanto isso, Washington aproveita a confusão, ocupa com seus radicais posições no Banco Mundial e na ONU e, fazendo coro com Londres, ridiculariza a ¿velha e decadente Europa do eixo França-Alemanha¿. O projeto-poder europeu de equilibrar o jogo global com os EUA pediu tempo; e o mundo terá de assumir as graves conseqüências desse fato.