Título: O presidente dois em um
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/06/2005, Nacional, p. A6

No improviso, Lula é agressivo; ensaiado, estende a mão. Qual seria o verdadeiro? Sob a batuta de Duda Mendonça, não resta dúvida, o presidente Luiz Inácio da Silva mostra-se, na forma, muito mais adequado ao posto, embora no conteúdo - vimos na campanha eleitoral, ouvimos de novo na quinta-feira à noite - faça concessões às generalidades e à tergiversação.

Sob a égide de sua espontaneidade, o presidente diz o que pensa, cede à tentação da jactância e incorpora o líder de fala agressiva e algo sectário, forjado na luta contra "os poderosos".

No pronunciamento de anteontem falou em "mão estendida" e, abstraindo-se a qualidade de suas citações (agora repetiu João Figueiredo como antes repetira o "doa a quem doer' de Fernando Collor), mostrou-se moderado.

Na terça-feira, Lula abordou o assunto de improviso, adotou o tom de conflito e culpou a oposição pelos males que o atormentam. Tal transposição de personalidade não teria maior importância se ao menos uma delas tivesse revelado à nação o que pensa o presidente da República sobre as denúncias que atingem dirigentes de seu partido e de agremiações integrantes de sua base de apoio parlamentar.

Essa dicotomia entre a atitude improvisada e as maneiras ensaiadas, também não chamariam atenção caso em algum dos dois estados de consciência o presidente tivesse revelado ao país suas idéias a respeito dos significados, das implicações, das conseqüências da crise em curso, e dos procedimentos a serem adotados para uma travessia o menos traumática possível.

Luiz Inácio da Silva, entretanto, não dirimiu dúvidas. No máximo, acrescentou mais uma incerteza ao já tão incerto cenário: afinal de contas, qual a posição do presidente frente a crise?

Quem lidará com ela, o presidente de fala conciliadora, que classifica a corrupção como "câncer antigo", mas reconhece como seu o dever de combatê-lo, ou o Lula do conflito que não admite como sua a responsabilidade de lançar luz ao escândalo em curso, joga todas as mazelas nas costas do Congresso e atribui a culpa da crise a uma entidade maléfica - conhecida agora genericamente pelo nome de "eles" - interessada em inviabilizar o seu mandato?

Por enquanto, a resposta é nenhum dos dois.

Tanto o presidente quanto seus auxiliares e aliados insistem na mesma tecla: abordam lateralmente o tema, tocam no assunto de forma difusa, quase acadêmica, como se em debate estivesse a tese a corrupção de maneira geral. Em seguida, desviam seus discursos ora para a desqualificação dos denunciantes, ora para o lema "nunca se combateu a corrupção como agora neste país".

Desse modo, usam a Polícia Federal, cujas ações merecem aplausos - embora nem sempre tenham sido bem recebidas, há exemplos recentes, no seio do governo e do PT -, como peneira para tampar o sol.

Uma coisa são as operações policiais às quais deveríamos nos acostumar a encarar como obrigatórias e não como algo excepcional. Outra bem diferente é a explosão de um escândalo com características específicas e do qual o governo buscou subtrair o caráter político ao tentar por todos os meios e modos evitar a investigação no Parlamento.

Ao tirar uma pela outra, o presidente Lula age como se o combate à corrupção fosse uma questão só de polícia e a prática da política aceitasse um certo relaxamento ético em nome de uma causa maior. Confunde as infelizes concessões que o realismo obriga um mandatário a fazer aqui e ali, com licença para transgredir impunemente. E ainda dá a isso o nome de "preço a pagar" para a obtenção da maioria parlamentar não obtida nas urnas.

O "preço" razoável, no caso, é a divisão de espaços de poder com outros partidos. Isso não autoriza ninguém a afrouxar os mecanismos de fiscalização e permitir que os integrantes da aliança transformem a máquina do Estado numa verdadeira casa da moeda para abastecer os caixas paralelos dos partidos e financiar fidelidades governamentais. Do contrário, o nome do jogo não é coalizão, é formação de quadrilha. Se houve isso, cabe primeiro ao presidente verificar e corrigir porque ainda tem mandato e tempo suficiente para isso. A polícia, federal que seja, entra na fase seguinte da história.