Título: Big Brother Brasília
Autor: Ivan Finotti
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/06/2005, Aliás, p. J8

Como gravam os cinegrafistas da comissão que investiga o esquema de corrupção nos Correios

Tem CPI dos Correios? Lá vão eles. Sessão no plenário? Eles já estão lá. Comissão Permanente de Desenvolvimento Regional e Turismo? De Agricultura e Reforma Agrária? Subcomissões do Idoso, do Livro ou da Igualdade Racial e Inclusão? Eles estão em todas. Se a maioria dos brasileiros se dá por satisfeito em acompanhar apenas alguns flashes das CPIs mais palpitantes pelos telejornais noturnos, eles, ao contrário, assistem a tudo, absolutamente tudo o que se passa no Senado Federal. E nem senadores eles são. 'Eles' são os cinegrafistas da TV Senado, um grupo de funcionários que todos os dias enfrenta horas intermináveis de discussões no idioma politiquês, dialeto burocratês, para registrar todos os passos, idéias e argumentos dos 81 senadores da República. E não pense que eles reclamam, não. Fábio Varela, o cinegrafista que gravou a CPI dos Correios na manhã desta quinta-feira, adora o que faz. 'A sessão de quinta até que foi legal.

Foi instigante. Teve esse empresário que mandou filmar o suborno. É duro porque a gente fica em pé o tempo todo, mas isso faz parte', conta Varela, que acompanhou cinco horas consecutivas de depoimento.

Além de ser testemunha ocular de momentos históricos da vida política do país, um cinegrafista oficial do Senado tem a chance de ver cenas que jamais irão ao ar na televisão brasileira, seja qual for a emissora. Varela, por exemplo, já cansou de acudir políticos com nós de gravata malfeitos. 'Também já avisei um senador que estava com caspa no paletó', revela. 'Estava aparecendo no vídeo, melhor avisar do que gravar assim.' Não cai bem para a Nação, claro, senadores da República mal-ajambrados. E a TV Senado, afinal, está do lado deles. Emissora pública, é um braço do Senado Federal que funciona desde 1995 e ajudou a mudar o comportamento dos membros da casa nesta última década.

MUDANÇAS

Há dez anos, muitos não sabiam como se portar na frente das câmeras. 'Não estavam acostumados', lembra Varela, que está no ofício desde o surgimento da emissora. Hoje já não é assim. Os senadores falam com desenvoltura e fazem questão de aparecer bem na foto. Algumas histórias já entraram para o folclore do Senado, como o caso de uma das câmeras do plenário que deveria ser fixa, mas foi trocada de lugar diversas vezes. Seu ponto original era num palanque colocado no meio das cadeiras, e ela gravava de frente os políticos sentados na mesa diretora. Mas, ali, incomodou alguns senadores, que se queixavam que o aparelho atrapalhava a passagem. A câmera foi então instalada no balcão superior. Até que um senador capilarmente desavantajado encasquestou que, apontando de cima para baixo desse jeito, a câmera fazia sua cabeça brilhar demais. Pediu providências e foi atendido. A câmera voltou para baixo. Depois subiu novamente ao balcão. Apesar de o senador com pouco cabelo nem estar mais em atividade, na última vez em que foi vista, nesta quinta, a câmera estava embaixo.

Vaidosos como devem ser expresidentes, ex-ministros ou exgovernadores, os senadores receberam de braços abertos a nova era televisiva. Para Helival Rios, diretor de jornalismo da TV Senado, houve três grandes mudanças na casa nesta década. 'Em primeiro lugar, acabou o discurso paroquial, aquele que interessava apenas aos vizinhos ou aos amigos do senador.

As falas passaram a ser de maior interesse nacional. Em segundo, a presença dos senadores aumentou de forma fantástica. E, por último, eles trataram a se vestir melhor.' Essa última conseqüência da instalação da emissora se explica, claro, porque as autoridades começaram a se ver com freqüência no vídeo. Daí foram melhorando o estilo. Mas se explica também por causa das esposas. Elas, que normalmente não acompanham os senadores à capital do País, passaram a ficar de olho na TV Senado. E devem ter tido chiliques homéricos, porque hoje, em Brasília, os senadores são sinônimo de elegância por onde quer que andem.

DUPLA JORNADA

A TV Senado possui hoje 20 cinegrafistas, todos funcionários terceirizados. Cada um recebe R$ 3 mil pelo turno da manhã, tarde ou noite e cerca de metade deles trabalha também para emissoras abertas. Varela, por exemplo, fica das 8h30 às 13h30 como cameraman da TV Senado. Depois, das 14 às 21 horas, vira repórter cinematográfico da TV Record. Trabalhar das 8h30 às 21 horas é uma jornada e tanto, mas foi assim que Varela, de 42 anos, conseguiu dobrar seu salário e financiar um Honda Civic usado ano 99. Outro cinegrafista de trabalho duplo é Pity Ribeiro. Das 13h30 às 18h30, ele carrega a câmera da TV Senado, uma beta analógica de 12 quilos. Das 18h30 à 1h30, põe no ombro a beta digital de 8 quilos da Globo. Mas é só no peso que a carga de Ribeiro é aliviada.

O trabalho que ele e Varela desempenham para as redes Globo e Record é bem diferente do que fazem para a TV Senado, apesar de a matéria-prima ser a mesma. 'Vejo muita coisa que poderia interessar à TV aberta. Às vezes um senador faz uma declaração infeliz ou presencio uma discussão entre dois deles.

Mas, se estou pela TV Senado, nem faço a imagem', diz Ribeiro, que usa um crachá diferente em cada emprego, para deixar claro à segurança e aos senadores para quem está trabalhando no momento. Essa dupla jornada cria situações curiosas, como conta Varela. 'O chato é fazer uma matéria elogiosa com um senador de manhã e, de tarde, ir atrás dele com uma denúncia. Dá vontade de se esconder atrás da câmera.' Outra diferença de filmagem: 'Quando gravamos o plenário com dois ou três senadores, dou um close para não mostrar que está vazio'. Já quando a gravação é para a TV privada, adivinhe só.

NOVIDADES

A TV Senado, que consome um orçamento de R$ 20 milhões anuais, sem contar a compra dos equipamentos, tem hoje 36 jornalistas e 167 técnicos terceirizados. Seu mais novo diretorgeral é James Gama, que assumiu o cargo há cerca de um mês.

Gama já chegou implantando novidades: no dia 14, o site da emissora (www.senado.gov.br/ tv) inaugurou a TV Senado 2 especialmente para acompanhar a CPI dos Correios. A medida é interessante porque, curiosamente, a TV Senado nem sempre pode exibir ao vivo as imagens da CPI. 'A sessão do plenário é prioritária', explica Gama. Nem sempre foi assim. A mudança ocorreu em 2002, quando a CPI dos Títulos Públicos estava fervendo e a emissora deixou de exibir o plenário. Os senadores que não participavam da CPI não gostaram. O peessedebista Arthur da Távola subiu à tribuna e desancou a TV Senado. De lá para cá, é só plenário.

Isso não impede as TVs privadas de usar o material, disponível via satélite. Além disso, a TV Senado é 24 horas e exibe em outros horários tudo o que acontece por ali - a única exceção são os depoimentos sigilosos e de portas fechadas.

Todo esse material acaba no arquivo da TV Senado, que reúne 18 mil horas de gravação. Se alguém resolvesse assistir a tido demoraria nove anos. Isso se ficasse na frente da tela oito horas por dia, cinco dias por semana, sem entrar em férias nem recesso parlamentar. Entre tantas CPIs passadas, há sempre aquelas melhores que outras, como bem sabem os repórteres cinematográficos Fábio Varela e Pity Ribeiro, que ajudaram a criar esse arquivo monumental. A mais tensa na qual Ribeiro trabalhou foi a que ouviu PC Farias. 'Foi a melhor de todas, desembocou no impeachment do presidente', lembra ele. Para Varela, a mais pesada foi a do Banestado. Os dois concordam, entretanto, com qual foi a mais engraçada de todos os tempos. 'Foi a do Orçamento', crava Ribeiro. 'Aquela dos anões, quando João Alves disse que ganhou mais de 100 vezes na loteria porque era sortudo. Outro dos anões, durante uma entrevista, chamou o presidente da CPI, o Benito Gama, de Benito Grana.', lembra ele. E mais a chata? 'Mais chata?', pergunta Ribeiro. 'Me desculpe dizer, mas chatas todas elas são uma hora ou outra. Chatas todas são.'