Título: "Fora Lula", um bordão parado no ar
Autor: Josué Leonel
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/06/2005, Aliás, p. J4,5

Para o veterano tribuno do Senado, a oposição age com responsabilidade ao não tocar em impeachment. Mas quem fala em golpismo é o governo

O senador Jefferson Peres, do PDT do Amazonas, é tido no Congresso como um pequeno grande homem. Explica-se: distingue-se pela compleição física (é baixo e muito magro) e pelos dotes de grande tribuno (é dono de oratória elegante e incisiva). Suas intervenções e pareceres tendem sempre para a busca da ética, matéria-prima um tanto quanto escassa no balcão da política nacional. Basta retomar dois momentos de sua biografia. Na contramão de muitos políticos que trocam de partido para se aproximar do poder, Jefferson deixou o PSDB, em pleno governo FHC, por divergências com os tucanos - e foi para o oposicionista PDT. No governo Lula, continuou na oposição quando viu muitos companheiros do PDT migrar para legendas governistas, como aves de arribação em busca de influências, cargos e verbas. Com 73 anos, em seu segundo mandato de senador e com a tarimba de quem atuou em outras CPIs, Peres revela-se bastante preocupado nesta entrevista exclusiva ao caderno Aliás. Sem meias palavras, atribui a crise política atual às "alianças espúrias" que o presidente Lula fez na montagem de sua coalizão de governo, no Congresso. Segue apontando erros na relação entre Executivo e Legislativo. São muitos e podem levar a uma crise de legitimidade da própria democracia - esse é, para Peres, o mais tenebroso cenário. Talvez por isso conteste com tanta veemência a tese de "golpismo" levantada por vozes governistas. "O que me espanta é que a radicalização está vindo não da oposição, mas do governo. A oposição não está gritando 'fora Lula', não está falando em impeachment, não está botando gente na rua", afirma o senador.

A evocação dos fantasmas golpistas é péssima para o Brasil, garante Peres. Seria o terreno propício para a aparição dos demagogos de ocasião, dos caudilhos deslocados no tempo, das bravatas ao estilo Hugo Chávez - um jogo perigoso, enfim. Argumenta que melhor do que imitar o receituário do presidente venezuelano seria o Brasil se mirar no espelho do Chile, país que consolidou sua transição econômica, ajustou suas contas e hoje pode se dedicar a formular políticas sociais para diminuir os índices de pobreza. Formado em Direito e com pós-graduação em Economia, Jefferson Peres vem da esquerda histórica. Participou da campanha "O petróleo é nosso", mas livrou-se das amarras nacionalistas. É totalmente a favor da política econômica brasileira.

Parlamentar dos mais experientes do Congresso, como o senhor compara esta crise política a outras já enfrentadas no País?

Este é um momento grave, espero que não desemboque numa crise institucional. Só que, agora, a sucessão de escândalos de corrupção talvez encontre o Brasil com instituições mais consolidadas do que no tempo de Collor. E as condições do atual presidente são diferentes. Lula tem um partido forte, tem o apoio de organizações sociais, tem popularidade e lida com um Congresso em grande parte desmoralizado. Isso afasta, ou ao menos torna improvável, um processo de impeachment. O que me preocupa, no entanto, é o risco de uma crise de legitimidade. A parcela da população que se sente traída pelo PT é grande, e isso não reverte em favor de nenhum grupo político. Há um sentimento de orfandade, uma falta de perspectiva na representação política. Isso pode nos levar a uma crise de legitimidade da democracia.

Olhando para trás, onde o senhor acha que o governo errou?

Lula errou ao querer ampliar muito sua base parlamentar, usando métodos tradicionais e espúrios no relacionamento com o Congresso. Cedeu e se tornou refém do fisiologismo. Quando assumiu, poderia e deveria ter inovado esse relacionamento, aproveitando que estava sob a auréola da unção popular. A expectativa era imensa em relação às mudanças que faria, mudanças de todo tipo. Lula tinha todas as condições para se impor moralmente no Congresso. O baixo clero teria ficado acuado. Era tão grande o apoio popular do presidente, no início do mandato, que ele falaria com autoridade, ainda que contando com uma base menor. Mas uma base mais coesa, mais sólida. O problema foi esse. O governo e o PT se nivelaram por baixo. Lula perdeu a oportunidade de inaugurar uma nova maneira de fazer política neste País. Agora é tarde demais.

O seu partido, o PDT, sofreu muito no processo de ampliação da base de governo...

Sim. O PDT ficou desfalcado. Pelo menos um terço da bancada foi cooptada pelos partidos aliados do governo.

Nessa cooptação de parlamentares, o senhor ouviu falar em "mensalão"?

A cooptação é imoral e não deveria ser praticada por governo que se respeite. Mas eu pensava que a cooptação no Congresso acontecia como forma de negociação de cargos. Mesmo no caso do PDT, pensei que os deputados tinham se bandeado em troca de cargos, principalmente nos seus Estados. Nunca ouvi falar, nunca pelo menos ninguém da bancada do PDT me falou da existência de mensalão. Tomei conhecimento disso por ocasião da denúncia do deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ). Mas já tinha ouvido falar, desde o governo de Fernando Henrique Cardoso, de compra de parlamentares em votações importantes, compra em dinheiro mesmo. Agora, pagamento de mensalidades, não. No plano federal foi novidade. Isso existe no plano municipal e estadual, eu até diria que é uma prática comum. Mas no Congresso não pensei que existisse.

O encaminhamento que o governo deu ao "caso Waldomiro" foi, digamos, o pecado original?

Insisto que o governo Lula errou, de início, ao não impor um novo padrão de relacionamento com o Congresso. Foi seu pecado original. Mas um ano depois, em fevereiro de 2004, praticou o segundo grande erro, ao não afastar José Dirceu da Casa Civil, talvez determinando que ele se licenciasse até o fim da investigação. E também errou ao impedir a CPI dos Bingos, que certamente levaria a Waldomiro.

E a eleição da presidência da Câmara, em que o candidato do governo, Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP), foi derrotado por Severino Cavalcanti?

Ali a base governista já estava em desagregação, o PT, muito dividido, e o governo, autoritariamente, num erro de avaliação monumental, tentou impor Greenhalgh, um candidato que tinha rejeição dentro do PT e rejeição ainda maior nos outros partidos da base aliada. Isso resultou na eleição de Severino, o que impôs um enorme desgaste político não só ao governo como à instituição. Foi a entronização do baixo clero na presidência da Câmara, coisa que nunca tinha acontecido.

A deputada Raquel Teixeira (PSDB-GO) confirmou ter recebido oferta de mensalão e o governador de Goiás, Marconi Perillo (PSDB), deve confirmar no Congresso as palavras da deputada e ainda adicionar a informação de que confidenciou esse caso ao presidente. A situação está ficando mais complicada para Lula?

Se ficar realmente comprovado, nem que seja por provas testemunhais, que o mensalão existiu... não há duvida de que o presidente sabia e se omitiu. É inverossímil que o presidente da República não soubesse o que faziam pessoas de sua mais absoluta confiança, como José Dirceu e Delúbio Soares, tesoureiro do PT. Como também é inverossímil que essas pessoas agissem, inclusive dentro do palácio, sem o conhecimento do presidente. Está provado, em testemunhos até de ministros, que Roberto Jefferson realmente contou a Lula que havia mensalão. Isso está provado. Agora, há o depoimento da deputada, já dado, e o anunciado depoimento do governador de que realmente advertiu o presidente. Para mim é suficiente. Parece-me inconcebível que um governador de Estado possa mentir à Nação em assunto tão grave. O silêncio do presidente só vai confirmar o que dirá Perillo. Até porque, se o presidente contestar o governador, terá de se submeter a uma constrangedora acareação. Por outro lado, Roberto Jefferson disse que alertou o presidente, e Lula teria mandado parar tudo. Mas isso não é tomar a providência que se espera. Isso é ser conivente.

É possível chegar a um pedido de impeachment?

É cedo para falar nisso. Impeachment é um processo traumatizante, que pode desembocar numa instabilidade séria. Acho improvável, embora possível. À oposição não interessa esse desfecho, só se as evidências e provas forem tamanhas que não reste outro caminho.

Há o risco da radicalização?

Há, sim. O que me espanta é que a radicalização está vindo não da oposição, mas do governo. A oposição não está gritando "fora Lula", não está falando em impeachment, não está botando gente na rua. A oposição está sendo mais responsável, agindo dentro da lei. Espantosamente o governo é que acusa. E acusa de forma falsa, incorreta, falando em golpismo e acirrando ânimos. Não só isso,está colocando os movimentos sociais nas ruas, em apoio ao governo, e organizando claques, como fez na semana passada, no retorno de José Dirceu à Câmara. Isso só serve para agravar a situação.

Mas existe um clima de golpismo?

Isso não tem sentido, absolutamente. A sociedade é testemunha de que a oposição não está no movimento golpista. Tudo começou nas próprias hostes do governo. A oposição não tem nada a ver com a gravação dos Correios e nada a ver com as denúncias do deputado Roberto Jefferson, que era um comensal do governo. E a oposição não está falando em destituir o presidente! De onde vem o golpismo? Por que golpismo? É claro que é a velha tática leninista. Toda vez em que os comunistas eram flagrados em ações condenáveis, em vez de se defender, acusavam. Eles querem passar à condição de acusadores.

O senhor atribui esse discurso ao PT ou também ao governo?

Não nos iludamos. É tudo com pleno conhecimento e autorização do presidente. Se o presidente quisesse, daria um basta nisso. Lula ainda tem liderança no PT. O que o partido não tem mais é aquela militância bonita, autêntica, idealista, que vinha espontaneamente para as ruas. O que se vê hoje é um quadro melancólico, são claques mercenárias. Se fosse feito um levantamento entre os petistas que lotaram as galerias da Câmara, na quarta-feira, 90%, se não 100% daqueles "militantes" devem ser funcionários da máquina sindical ou do aparelho estatal, com certeza.

É possível separar as investigações dos escândalos dos Correios e do mensalão?

A CPI dos Correios deve gerar um efeito de encadeamento com o mensalão. Se a base governista tentar impedir isso, daí a oposição tem o dever de instalar a CPI do Mensalão, para a qual já tem número de assinaturas suficiente. E ainda tem de reserva a CPI dos Bingos, permitida pela resolução do Supremo Tribunal Federal. No meu entender, deveríamos manter em banho-maria a CPI dos Bingos e deixar no gatilho a CPI do Mensalão. Se realmente o governo tentar circunscrever a CPI do Correios estritamente à ECT, então teremos de instalar as outras CPIs.

Provas materiais são indispensáveis para comprovar corrupção?

As provas são de vários tipos. Tem a prova documental, a prova testemunhal, a prova pericial. A pericial pode ser irrefutável, por ter sido gerada cientificamente. Já o documento pode ser num primeiro momento uma boa prova, mas, num segundo momento, pode ser dado como falso. A prova testemunhal é a mais frágil das três modalidades, porque depende da idoneidade e da memória das pessoas. É uma prova muito falha, mas não deixa de ser prova. No julgamento político, o testemunho pode ser suficiente, ao contrário do julgamento jurídico, que sempre poderá invocar a máxima in dubio pro reu. Ou seja, havendo dúvida, absolva-se o réu. No mundo político não é assim. Se as provas existem, se convencem a classe política e principalmente a sociedade, é o que basta para a condenação. No caso Collor, PC Farias era o agente dele. Ponto final, isso bastou.

Como o senhor vê o cenário político daqui para a frente? Há alguma liderança despontando?

Aquela crise de legitimidade de que falei no início da entrevista me preocupa, porque é a crise da desesperança, da descrença total na democracia representativa. Pode até acontecer de Lula ganhar a eleição por falta de alternativas - mas não mais por entusiasmo do povo. Talvez cheguemos a uma sucessão na qual os outros candidatos não inspirem maior confiança. E, entre Lula e os outros, fica-se com Lula. É como eu disse: hoje a descrença em Lula não reverte em favor de ninguém. Quanto ao PT, o prejuízo é irreversível. O partido perdeu a identidade. Ele se apoiava em duas pernas. A ideológica, que incluía um vago projeto de socialismo. Essa perna ainda hoje sustenta a esquerda do partido, uma minoria. A outra perna, muito mais forte, era a axiológica, carregava a bandeira da ética. Essa perna também se partiu agora. O PT é um partido sem pernas, é um partido sem identidade. Ele se diluiu na geléia geral. Ficou igual aos outros. Para responder objetivamente à pergunta, não sei se vai surgir alguma coisa que capitalize essa revolta popular, porque é uma revolta surda, um sentimento da amargura de quem se sente traído. O PSDB não ocupará esse espaço, certamente. Daí meu receio. Essa revolta surda poderá ser capitalizada por um Chávez da vida, um aventureiro, um demagogo, um caudilho no velho estilo.

Por que o PSDB não capitaliza esse sentimento de desencanto? A desilusão com o governo FHC ainda é forte?

Os eleitores desiludidos com Lula não vêem no PSDB o novo. Seria um retorno ao governo FHC, cujas práticas o próprio Fernando Henrique condena em Lula. Esse é o grande mistério: se os eleitores se desiludem com Lula e não acreditam no passado, vão para onde? Não sei e nem tenho bola de cristal.

Qual sua opinião sobre o presidente Lula? É honesto? Tem preparo para enfrentar crises?

Acredito na honestidade dele. Lula seria incapaz de participar de corrupção em proveito próprio. Mas acho que pode ter abandonado seu compromisso ético ao ser conivente com práticas de corrupção política, com o fisiologismo no Congresso, com o loteamento dos cargos ou ao fingir que não via o que acontecia a seu lado. Deveria saber qual era a missão do senhor Delúbio. O presidente não é corrupto, mas se tornou complacente com a corrupção em nome da governabilidade e, talvez, de olho na sucessão. Votei em Lula no segundo turno e hoje penso, ao contrário do que pensara antes, que ele não estava preparado para ser presidente. Não tem a perfeita noção de que a Presidência da República é uma instituição, e a mais importante do País. Lula gosta do lado externo, do palco iluminado, de viajar, de fazer inaugurações, de falar, de posar de estadista. Mas tem absoluta inapetência pelo hábito de governar, pela rotina de governar. Como não tem espírito republicano, acha que pode governar com o coração. Por isso tem pena de demitir os companheiros, como criou ministérios para abrigar amigos derrotados... Fora isso, há a maneira de falar do presidente, uma comunicação quase megalomaníaca, dizendo que tudo aconteceu no governo dele. "Nunca, nunca no passado, nunca neste País", é sempre o mesmo discurso. Ainda ontem ele falou "nunca na história republicana". Primeiro precisa conhecer a história republicana.

Como o senhor vê a reforma política que está sendo debatida no Congresso?

O texto que está no Congresso comete até retrocessos. Estou pessimista, mas o fato é que a sociedade está amadurecendo. As pessoas já não querem apostar tudo em alguém ou em algum partido. Há um ceticismo até certo ponto salutar, como acontece nos países de Primeiro Mundo. Lá, grande parte da população nem participa do processo político. A abstenção eleitoral é grande. E quem vota escolhe entre diferentes partidos, sem ilusões. Não pensam eleger salvadores da pátria. O povo brasileiro começa a perceber que não existem os salvadores da pátria e não se pode confiar em projeto messiânico.

Qual é sua previsão para 2006?

Se não houver uma catástrofe, e espero que não haja, nós poderemos dar um salto de qualidade e, quem sabe, chegar a uma situação semelhante à do Chile de hoje. O Chile é um paradigma para toda a América Latina.

Por quê?

Porque lá se criou um consenso em torno do básico, do essencial. Por exemplo, entre todos os partidos, sejam os conservadores, sejam os mais progressistas, formou-se o consenso de que o equilíbrio macroeconômico é básico. Ninguém mais discute isso hoje no Chile, o que se discute são as políticas públicas. Isso permite ao país experimentar uma situação inusitada na América Latina. Desde o fim do regime militar, os governos chilenos vêm alcançando três objetivos que todos os países latino-americanos perseguem, mas só o Chile alcançou. Primeiro: crescimento econômico alto, em média 5% ao ano. Segundo: inflação baixíssima, hoje em 3% ao ano. Terceiro: uma sistemática e rápida redução da pobreza, que é sem dúvida o mais importante dos três objetivos.

Esse é um modelo que o Brasil deveria imitar?

Sem dúvida. Ainda existe no País, no campo da direita, uma classe patrimonialista influente. E, mesmo na esquerda, eu diria que boa parte da classe política é patrimonialista também. E resta ainda uma esquerda nostálgica, anacrônica. O que falta no Brasil é modernidade em todos os partidos. Modernidade e espírito republicano.

Diante de tantas denúncias, o tema do financiamento público de campanhas, que é parte da reforma política, ganha relevância. Como fazer com que esse financiamento seja suficiente, se as campanhas no Brasil têm custado tão caro, com artistas contratados, programas de televisão fantásticos, marqueteiros pagos a peso de ouro?

As campanhas eleitorais já são feitas com financiamento público espúrio. Ou porque usam diretamente os recursos da máquina administrativa, ou, pior, angariam recursos vindos da corrupção. É o dinheiro do superfaturamento de obras que vai alimentar o caixa dois dos partidos. É dinheiro público indiretamente. Ambos ilegais e imorais. É assim que se fazem 90% das campanhas no Brasil, essa é a triste realidade. Agora, o financiamento público legal pode pôr fim a isso, mas tenho receio do desvirtuamento do sistema. Será necessária uma estruturada e rigorosíssima fiscalização por parte da Justiça Eleitoral. Isso infelizmente ainda não existe. Outro aspecto importante: que as eleições proporcionais se façam mediante listas fechadas. Mas também tenho medo de que isso não dê certo, já que os partidos pecam pela falta de democracia interna, dominados por caciques regionais que administram recursos e conveniências. Por isso, cautela. As melhores reformas podem se desvirtuar inteiramente e até piorar as coisas.

O senhor acha que essa crise política pode acabar contaminando a economia?

Felizmente a política macroeconômica vem sendo conduzida com responsabilidade. O meu receio é outro. É o de que Lula, enfraquecido política e eleitoralmente, e na ânsia de se reeleger, embarque no populismo. Um populismo em que ele abandone a política macroeconômica atual, ceda à tentação de relaxar o controle da inflação, a busca do equilíbrio das contas públicas, e comece a realizar obras e mais obras, destrambelhando tudo. Se os agentes econômicos perceberem que o país toma esse rumo, daí, então, a contaminação certamente acontecerá.