Título: Sentimento anti-China ameaça o livre comércio
Autor: Patrícia Campos Mello
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/06/2005, Economia & Negócios, p. B4

Na quinta-feira, a estatal chinesa China National Offshore Oil Corporation (CNOOC) fez uma oferta de US$ 18,5 bilhões em dinheiro para comprar a Unocal, gigante de energia dos Estados Unidos. A oferta superou a da rival americana Chevron e despertou a ira nacionalista de empresários e políticos dos EUA. Eles afirmam que a aquisição chinesa é uma ameaça à segurança nacional. No Congresso americano, tramita uma série de projetos de lei prevendo tarifas sobre produtos chineses por causa de supostas práticas ilegais de comércio. Esses são apenas os mais recentes surtos da sinofobia que tomou conta do mundo. A China, que há pouco tempo era a queridinha dos investidores e empresários, transformou-se no bode expiatório preferido em vários países. O crescente déficit comercial dos EUA, a crise na indústria têxtil do mundo, a alta do petróleo - tudo culpa da China, dizem os críticos.

E o sentimento anti-China vai piorar, alertam especialistas. O superávit comercial da China, de apenas 2% do PIB em 2004, deve chegar a 7% do PIB neste ano, segundo previsões do banco Standard Chartered.

Até 2004, a China era uma potência exportadora, mas também grande importador. Desde o fim do ano passado, porém, os chineses vêm reduzindo as compras de outros países. "É uma mudança estrutural, enquanto as exportações crescem 30%, as importações crescem apenas 10% e, para alguns produtos, estão caindo", diz Stephen Green, economista do banco Standard Chartered em Xangai. Resultado: uma invasão de produtos chineses no mundo.

Mas o que mudou? As empresas chinesas passaram a produzir em território chinês vários dos produtos que importavam. O aço é um bom exemplo - de grande importadora, a China se transformou em exportadora líquida de aço. Além disso, a política de desaceleração do governo esfriou alguns setores, que diminuíram drasticamente as importações. Ao mesmo tempo, a instalação de empresas estrangeiras na China transformou-a em um pólo exportador fortíssimo. "O crescimento da China não parece mais ser amigável para o resto do mundo", afirma Jonathan Anderson, economista do UBS responsável pela Ásia, em um artigo no The Far Eastern Economic Review.

Segundo Guy de Jonquieres, colunista do Financial Times especializado em Ásia, a lua-de-mel do mundo com os chineses acabou, e de forma abrupta."Com a mudança estrutural no comércio exterior da China, a onda de protecionismo mundial deve crescer ainda mais", diz. "Esperamos ver muita briga nos próximos 18 meses."

Os EUA, que têm déficit comercial de US$ 150 bilhões com os chineses, foram os primeiros a aumentar o volume das críticas. O secretário do Tesouro, John Snow, não perde oportunidades de pressionar a China para valorizar seu câmbio, que tem cotação fixa de 8,28 yuan por dólar há quase dez anos.

Os americanos adotaram salvaguardas para vários produtos têxteis chineses. Está no Senado a Lei Schumer, que determina uma tarifa de 27,5% em todas as exportações chinesas se a China não valorizar o yuan em seis meses. A UE fechou um acordo com a China, que se comprometeu a autolimitar suas exportações de têxteis.

No Brasil, o governo regulamentou o uso de salvaguardas específicas contra a importação de produtos chineses. Espera-se que empresários do setor têxtil, de vestuário, instrumentos ópticos, escovas e calçados de borracha peçam ao Ministério de Desenvolvimento que imponha salvaguardas. As importações brasileiras de produtos chineses explodiram nos cinco primeiros meses de 2005, com uma alta de 58%, enquanto as exportações caíram 4%.

"Estou tendo um déjà-vu; corremos o risco de voltar à era do comércio administrado", diz Jean-Pierre Lehmann, professor de Política Econômica Internacional do IMD e fundador do Evian Group, grupo de defesa do livre comércio.

Segundo Lehmann, a onda de protecionismo é parecida com a campanha anti-Japão dos anos 80. Na época, o Japão se impôs autolimitações para exportações de carros e semicondutores, tal como a China acaba de fazer em relação aos têxteis na Europa. "Para ele, trata-se de uma situação muito perigosa, todas essas restrições distorcem o comércio."

"Todo mundo está culpando a China por seus problemas", diz Daniel Rosen, professor da Universidade Columbia, especialista em China. "Mas, se a China não existisse, eles estariam culpando a Índia ou Bangladesh." Para Rosen, o problema está muito mais nas ineficiências das economias de outros países do que na competição "desleal" chinesa.

Especialistas acreditam que as batalhas comerciais vão esquentar nos próximos meses. Mas o real problema, dizem, não é a China, é a saúde frágil da economia mundial. É mais fácil usar a China como bode expiatório do que os grandes blocos arregaçarem as mangas para resolver seus problemas: os EUA precisam equacionar seu déficit gigantesco, a Europa, escapar do crescimento anêmico e o Japão, finalmente, se recuperar. E apenas a valorização do yuan não vai fazer toda essa mágica, dizem economistas.

O próximo alvo do protecionismo global, alertam especialistas, é o Brasil. "Já vemos franceses e alemães reclamando: assim como a China rouba nossos empregos na indústria, o Brasil vai roubar empregos agrícolas se não mantivermos a política agrícola comum", diz Lehmann. Segundo ele, o sentimento anti-China de hoje pode se transformar em sentimento anti-Brasil. "Hoje, o europeu tem três pesadelos: perder o emprego para o encanador