Título: Botos adotam família no Amazonas
Autor: Liège Albuquerque
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/06/2005, Vida&, p. A28

Brincalhões, eles são a principal atração de um restaurante a 115 km de Manaus

MANAUS - Dani é o mais ciumento e não pode ver a "mãe" acariciar os irmãos que vai logo bicando para afastá-los. A cena seria corriqueira se fosse protagonizada por animais de estimação e seus donos fora d'água, mas é estrelada por botos cor-de-rosa e sua "mãe" humana nos fundos de um pequeno restaurante em Novo Airão, a 115 quilômetros de Manaus. Marilda Medeiros, de 35 anos, abriga no quintal típico amazônico, o Rio Negro, 12 botos cor-de-rosa que têm uma relação de cachorros mansos com ela e as duas filhas há mais de sete anos. "Pára com isso, Curumim, comporte-se", diz a "irmã" mais velha dos botos, Marisa, de 16 anos, nadando com os animais e tentando se desvencilhar de um dos mais afoitos. Monique, de 14, é a que tem menos voz de comando e não se importa com a bagunça dos companheiros de brincadeiras. Fazendo inveja aos turistas, ela agarra a barbatana de um deles e vai sendo puxada dentro d'água.

O espetáculo dos 12 botos de estimação com as três mulheres é alvo, no pequeno município, do mito "destrutivo", como chama Marilda - a lenda amazônica de que os botos cor-de-rosa são amantes de mulheres e pais de grávidas solteiras. "Não damos a menor importância a essas bobagens", diz Marilda, beijando na testa Fefa, que pula para pegar um pedaço de peixe na mão da "mãe".

Agora, os 12 botos, que já foram personagens de documentários para a BBC e TVs alemã, japonesa e italiana, são material de uma pesquisa de mestrado no Instituto de Pesquisas da Amazônia (Inpa). A bióloga Carla Barezani, que deve defender sua monografia ainda neste semestre, relaciona as intrigantes características dessa incrível relação homem-boto, a única conhecida cientificamente em todo o mundo.

"Além de o boto cor-de-rosa (na região conhecido como vermelho) ter a característica de ser mais arisco do que o tucuxi (uma espécie cinza-escura), que é mais comum na Amazônia, eles não costumam nadar em grupos como os de Novo Airão", diz. Além disso, segundo a bióloga, é notório que os animais não vêm só para comer. "Eles são curiosos, vêm para brincar com as meninas, mesmo fora dos horários de comida." Os botos comem uma média de cem jaraquis (peixe da região) por dia, dados aos pedaços na boca.

Há pouco mais de um ano, biólogos do Ibama instruíram as donas dos botos, cujo restaurante pintado de rosa e, principalmente, a atração do quintal são procurados diariamente por turistas de todo o mundo, a alimentarem os animais só duas vezes por dia, em horários fixos. A idéia é também não tirar do animal seu instinto de caça na natureza. "Para não estressá-los, só alimentamos das 10 ao meio-dia e das 15 às 17 horas", conta Marilda.

O Ibama e a ONG Instituto de Pesquisas Ecológicas (Ipê) também orientaram Marilda a cobrar para ajudar nas despesas com os peixes e selecionar mais as visitas. Turista estrangeiro paga R$ 20 e brasileiro, R$ 10, com direito a um saquinho de peixe para dar aos botos. Nadar com eles é difícil. Além da coragem, o turista precisa convencer Marilda, que teme que as pessoas os machuquem mesmo sem querer.

DA FAMÍLIA

Doidinha foi a primeira a chegar, há sete anos. "Estávamos pescando e ela pegou o peixe. Ficamos um pouco assustadas, mas aos poucos fomos perdendo o medo e pegando amizade. Doidinha estava grávida", conta Monique. Aos poucos os outros foram se juntando ao grupo: Curumim, Vi, Fefa, Dani, Heidi, Cauã, Josefá, Reginaldo, Rafinha, Bico Torto e Lawrence. Este último foi batizado em homenagem ao cinegrafista Lawrence Wahba, que filmou o grupo de botos no ano passado.

Bico Torto e Reginaldo são os mais fáceis de reconhecer. O primeiro porque o bico realmente é torto e o segundo porque o bico é um pouco torto. "Reginaldo às vezes some, acho que é o mais namorador", comenta Marisa. Lawrence, de 1 ano, é o mais brincalhão. Enquanto os turistas se sentam em uma tábua, com os pés na água, ele cutuca por trás e se esconde rápido.

Nos fundos do restaurante, muito óleo diesel na água, derramado dos barcos atracados no porto ao lado. "O hábitat deles poderia ser mais limpo se houvesse mais consciência das pessoas, se houvesse alguma ajuda da prefeitura ou do governo do Estado para preservar esse espetáculo", diz o biólogo Thiago Cardoso, do Ipê.

Ao redor do flutuante onde fica o restaurante, com vista privilegiada para o maior arquipélago fluvial do mundo, Anavilhanas, bares com músicas em volume altíssimo ensurdecem os turistas. "Embora o som seja desagradável por ser muito alto, pelo jeito não afeta os animais, que mesmo assim se aproximam do restaurante, mas é preocupante a poluição da água no local", destaca Carla Barezani.

As botos fêmeas foram as mais exibidas durante a reportagem. Fefa e Vi saltavam alto para pegar peixe da mão dos turistas. Dani arranhava os companheiros com os dentes para chamar a atenção. Marilda brinca com a lenda das mulheres do boto. "O nome do restaurante é Marilda dos Botos e eles não são meus animais de estimação. Eles nos escolheram. Agora são Medeiros, são 12 dos meus 14 filhos: 12 botos e 2 meninas."