Título: Da propina de R$ 3 mil à crise que abalou o governo Lula
Autor: Carlos Marchi
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/07/2005, Nacional, p. A8

Nunca, em tão pouco tempo, a geografia da política brasileira mudou tanto como nos últimos 78 dias; desde 14 de maio, quando foi divulgada a primeira denúncia contra um funcionário dos Correios, muitos poderosos passaram a suspeitos da noite para o dia e viram o poder que tinham virar pó. A sucessão avassaladora de fatos e nomes transforma o culpado de ontem no quase anônimo de hoje; em poucos dias, protagonistas caem no esquecimento.

A maior crise do governo Lula testa a democracia e as instituições brasileiras. Quando a crise começou, ninguém falava ainda em CPI; as acusações eram desmentidas com muita soberba e certa incredulidade. Mas, aos poucos, numa escalada incontrolável, as denúncias se acumularam e o dominó começou a cair. No começo, havia um único e solitário personagem, o funcionário dos Correios Maurício Marinho. Nas últimas semanas, poucos se lembravam de seu nome.

MARINHO? QUEM?

Na CPI dos Correios, o nome de Marinho pouco é pronunciado; apurar a corrupção nos Correios virou uma tarefa tão burocrática que os parlamentares a legaram ao Ministério Público e à Polícia Federal. Assoberbados por tantos novos indícios mais apetitosos, eles se voltam para investigar a corrupção no governo e dentro de sua própria casa, o Congresso.

Poucos se lembram, mas o deputado Roberto Jefferson começou como vilão, acusado de envolvimento com o agora modesto esquema de corrupção dos Correios e, logo após, do Instituto de Resseguros do Brasil (IRB). Matreiro, deu a volta por cima e, depois de duas entrevistas-bomba, passou a acusador, denunciando o esquema do mensalão na primeira e, na segunda, dando o nome do operador do esquema: o então desconhecido publicitário Marcos Valério Fernandes de Souza.

A evolução das denúncias consagrou alguns fenômenos curiosos da política. O primeiro deles foi "a verdade por etapas". A cada dia, os acusados contavam apenas o que já tinha sido revelado e negavam o resto; no dia seguinte, com o surgimento de novas revelações, davam novas explicações, bem no estilo 'ah, eu tinha esquecido...'

Assim agiu, no atacado, a antiga direção do PT. Assim agiu, no varejo, o deputado João Paulo Cunha (PT-SP), ex-presidente da Câmara, que protocolou carta na CPI dos Correios afirmando que sua mulher tinha ido ao Banco Rural para pagar uma conta de TV a cabo. Quando ficou provado que ela tinha sacado R$ 50 mil, ele retirou discretamente a carta e sumiu de circulação, para não ter de refazer a explicação em público.

"SAI LOGO"

A primeira entrevista de Jefferson mereceu desmentidos indignados. Tido como mentor do esquema, o então ministro José Dirceu negou sua renúncia. Jefferson contra-atacou: "Sai daí, Zé, sai depressa", disse, em depoimento ao Conselho de Ética da Câmara. Dirceu saiu e disse que voltava à Câmara para se defender. Quarenta e cinco dias depois, não pronunciou um discurso, nem se dispôs a ir à CPI para se defender.

A primeira confirmação das denúncias de Jefferson surgiu quando a secretária Karina Somaggio revelou o esquema dos milhões de Valério. A proposta de uma CPI surgiu como uma especulação distante, mas a velocidade vertiginosa das denúncias tornou-a inevitável. A primeira grave prova contra o partido do governo veio com a descoberta de dois empréstimos do PT nos bancos BMG e Rural, com avais de Valério.

Entrou em cena, então, outro fenômeno político: a "transferência de culpa". A cada nova revelação, as culpas eram concentradas num acusado, para circunscrever o estrago. Os dominós caíram em série no PT: primeiro foi o ex-tesoureiro Delúbio Soares, seguido do ex-secretário-geral Silvio Pereira e, após, o ex-presidente José Genoino; logo o presidente Lula removeu vários ministros do PT (ficaram apenas Antonio Palocci e os inexpressivos).

GALÃ DE NOVELA

Da noite para o dia Marcos Valério se tornaria personagem tão conhecido quanto um galã de novela. Os bancos com que operava, até então desconhecidos, ganharam as primeiras páginas dos jornais. Valério também criaria o terceiro fenômeno da crise: as "versões substitutivas". Até hoje, contou três delas para explicar a montanha de dinheiro que manipulo u.

Logo surgiram indícios de uma farta distribuição de malas de dinheiro. Mal desmentida uma versão acontecida em Goiás, o personagem de outra, cearense, acabou preso no aeroporto de Congonhas com R$ 200 mil na mala e US$ 100 mil na cueca. Era assessor do deputado José Nobre Guimarães, do Ceará, irmão de Genoino, que foi para o chão.

O escândalo devastou o PT e o governo e distribuiu sopros de tragédia na cena política brasileira. Quando deu sua terceira versão, Valério optou pelo crime menor - o uso de recursos não declarados em campanhas eleitorais. Mas logo as investigações mostrariam que assessores de vários deputados fizeram saques nas contas milionárias de Marcos Valério.

A descoberta apontou para os primeiros alvos das futuras cassações. Foi possível saber que a gigante da telefonia Telemar tinha comprado parte de uma empresa recém-criada do filho do presidente, além de injetar nela uma quantia extra para uma "compra antecipada" da produção. Ao todo, foram R$ 5 milhões difíceis de explicar. Logo se falaria de impeachment pela primeira vez - e a oposição se apressou em declarar que não apoiava a idéia.

No auge da crise, Lula disse em Paris que o crime atribuído ao PT - operar com caixa 2 - era comum na política brasileira. Na volta, o presidente buscou as multidões de operários e passou a acusar um "golpe das elites". Lula falou muito, mas não disse o que o País inteiro esperava: declarações incisivas e definitivas de que o presidente desconhecia o esquema do mensalão, as bruxarias financeiras de Delúbio e Valério, e a captação de dinheiro ilegal para as campanhas petistas.

O último lance da crise foi derramar parte dos pecados do PT sobre o PFL e o PSDB, principais partidos da oposição. O PFL viu um de seus mais importantes deputados, Roberto Brant (MG), ser rotulado como um dos recebedores do esquema de distribuição de verbas de Valério.

O PSDB foi carimbado como cobaia de Valério: em 1998, na campanha do hoje senador (e presidente nacional do partido) Eduardo Azeredo para o governo mineiro, Valério testou o esquema: usando contratos do governo mineiro como garantia, fez empréstimos no BMG - embora sem aval do partido, como agora aconteceu com o PT - e distribuiu o dinheiro entre candidatos do grupo de Azeredo.