Título: Pais de autistas lutam contra descaso
Autor: Alexandre Rodrigues
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/06/2005, Vida&, p. A26

Associação recorre à Defensoria Pública do Rio na esperança de que o Estado construa unidades para o tratamento da síndrome

RIO - Depois de meses de peregrinação entre diferentes médicos e especialistas, o servidor federal Ulisses Batista finalmente ouviu o diagnóstico: seu filho Rafael, então com 2 anos e 8 meses, era autista. A revelação que pôs um ponto final nas dúvidas sobre as causas dos transtornos apresentados pelo menino trouxe outras interrogações para ele e sua mulher, a enfermeira Rosângela Batista. Como a maior parte dos brasileiros, eles não sabiam o que era o autismo, que se caracteriza pelo comprometimento das capacidades socioemocionais e comunicativas provocado por disfunções do cérebro. O casal também não sabia o que fazer para tratar a síndrome, que acompanhará Rafael por toda a vida. A primeira coisa que ouviram dos médicos foi: é um tratamento caro, disponível somente em instituições particulares.

A advertência é ouvida por quase todos os pais que, após passar por muitos consultórios, descobrem o autismo dos filhos. A partir daí, começa a nova peregrinação: onde encontrar tratamento?

Essa é uma tarefa árdua, em especial para famílias de baixa renda. Não há unidades especializadas para o tratamento nas redes públicas de saúde e educação.

"O problema gravíssimo que enfrento é: quando chego ao diagnóstico, não tenho para onde mandar a criança", lamenta o médico Adaílton Pontes, neurologista do Instituto Fernandes Figueira (IFF), unidade da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio.

Centenas de crianças autistas passaram pelo seu consultório nos últimos anos. Algumas fizeram parte de sua pesquisa, que tenta achar um método específico para o diagnóstico da síndrome, ainda inexistente. Uma ferramenta que não terá valia sem o tratamento dos portadores. "Para o médico e para a família, é muito frustrante. Encaminhamos as mães ao serviço social, mas elas iniciam uma peregrinação sem fim. Só as que se dizem com muita sorte conseguem. A maioria delas termina na porta da Justiça", conta.

AÇÃO

A Defensoria Pública do Estado do Rio foi a última porta na qual a Associação Mão Amiga, que reúne parentes de portadores do autismo no Rio, bateu. A pedido do grupo, a defensora pública Daniela Considera elaborou uma ação civil pública contra o governo estadual.

A ação pede a condenação do Estado à obrigação de construir unidades especializadas próprias que ofereçam atendimento gratuito e integral para os autistas. Enquanto isso não ocorre, o grupo espera com ansiedade que o juiz aprecie o pedido liminar de tutela antecipada.

A Defensoria quer que a Justiça, antes mesmo do julgamento, obrigue o Estado a pagar o tratamento dos pacientes em unidades particulares.

"O tratamento é muito importante para o desenvolvimento da pessoa autista, mas só acessível aos abonados financeiramente, o que é lamentável. As famílias que não têm condições acabam, muitas vezes, deixando o autista preso em casa para poder exercer suas funções cotidianas", justifica a advogada, que esperava uma decisão sobre a antecipação de tutela na semana passada, mas o governo do Estado pediu prorrogação do prazo para contestar a ação e justificar a falta da estrutura. "Quanto mais o tempo passa, mais prejudicado fica o desenvolvimento deles. Recebemos com muita freqüência pedidos de ações individuais e por isso queremos uma solução para todos."

DESINFORMAÇÃO

Por trás da falta de programas voltados para o autismo está a desinformação, até mesmo de autoridades e profissionais de saúde e educação, sobre uma síndrome que não é tão rara.

Apesar da falta de números oficiais no Brasil, estima-se que a prevalência do autismo seja de 1 para cada mil nascidos, sendo quatro vezes mais comum no sexo masculino. Como o autismo ainda não pode ser ser detectado por um exame específico, o diagnóstico é puramente clínico, feito pelos médicos a partir de critérios determinados.

Até 1 ano e 2 meses, Rafael parecia desenvolver-se como qualquer criança da sua idade: ensaiava as primeiras palavras. Com o nascimento da irmã, vieram os primeiros comportamentos estranhos. Ele recebeu a nova integrante da família com indiferença. Aos 2 anos, parou totalmente de falar. Aos 3, nem respondia ao ouvir o próprio nome. Apesar de afetuoso, alternava comportamentos de agitação extrema e isolamento total combinados com reações como o movimento repetido das mãos e o hábito de andar nas pontas dos pés.

"Estávamos perdidos, sem saber o que fazer, e o pediatra que o acompanhava desde bebê não sabia nem por onde começar. Dizia que logo tudo ia passar, que algumas crianças se desenvolvem mais tarde. Decidimos então procurar outros especialistas, mas ninguém descobria", conta o pai. "Durante quatro meses, meu filho fez exames diários. Até que chegamos a uma psiquiatra infantil que fez o diagnóstico. Os pediatras não são preparados para reconhecer a doença."

Segundo o neurologista Adaílton Pontes, o distúrbio causado pelo autismo tem, provavelmente, causas genéticas combinadas com fatores ambientais e começa a se desenvolver já dentro da barriga da mãe.

Os autistas apresentam uma disfunção principalmente no hemisfério direito do cérebro, responsável pelas emoções e o convívio social. "Eles vêem as pessoas fazendo as coisas, mas os gestos e a linguagem não fazem sentido. A subjetividade da entonação de um frase, por exemplo, que para nós parece simples, eles não são capazes de reconhecer", explica.

Como o cérebro das crianças tem mais facilidade de se recuperar, o diagnóstico precoce seguido pelo tratamento pode fazer que elas conquistem elementos para seguir uma vida próxima do normal. Daí vêm os exemplos recorrentes de autistas que são, por sua objetividade, experts em ciências exatas, como a matemática, e conseguem até chegar à universidade. Infelizmente, esse é um grupo muito pequeno.

DIREITO NEGADO

Diferentemente dos portadores da síndrome de Down, os autistas são freqüentemente confundidos com portadores de outros transtornos, como a esquizofrenia. A maioria das escolas, até as particulares, recusa a matrícula, contrariando um direito constitucional. Nas escolas públicas do Rio, as turmas especiais oferecem apenas 50 minutos diários de atividades.

"Depois de chorar, fui me informar", lembra Barbosa, que empreendeu uma luta contra o tempo. Ele mergulhou na internet em busca de informações, tomou parte de listas de discussão, freqüentou as palestras e seminários de especialistas. Chegou a empenhar 80% do próprio salário para pagar a mensalidade de R$ 1.200 de um dos poucos centros de reabilitação para autistas do Rio, na Barra da Tijuca, onde Rafael ficou por dois anos e começou a falar.

Hoje, o menino de 9 anos freqüenta a terceira série de um colégio particular com o acompanhamento quinzenal de um psicólogo e consome 50% do orçamento da família.

Para compensar a falta de instituições com um programa integrado, o pai ocupa o tempo de Rafael com atividades que buscou perto de casa, em Campo Grande (zona oeste), que estimulem seu desenvolvimento.

Além das sessões de fonoaudiologia, responsáveis pela dicção afinada do menino, e psicopedagogia, Rafael exercita a habilidade para matemática com aulas regulares de um método japonês de ensino (Kumon) e pratica natação. Para estimular a concentração, tem aulas de piano na casa de uma professora aposentada.

Em casa, exercita a memória fora do comum em jogos de computador. É capaz de descrever, quase sem respirar, todas as etapas que levam à vitória num dos seus games preferidos.

"É um investimento muito grande, eu e minha mulher abrimos mão de muita coisa. Como um pai vai fazer isso com um salário mínimo?", pergunta Barbosa. Foi trocando experiências com outros pais de autistas e conhecendo a realidade de quem não achou as mesmas saídas que ele resolveu procurar a Defensoria Pública e liderar o pedido da ação judicial.

ESPERANÇA

"Quando ele nos propôs procurar a Justiça, ficamos temerosos. Mas estamos cansados de esperar. Poucas pessoas reconhecem o autismo. Ninguém dá importância", queixa-se Iranice Pinto, dona de casa que preside a Associação Mão Amiga. Numa sala cedida por uma igreja, o grupo atende 22 crianças autistas duas vezes por semana e paga os profissionais com o dinheiro de doações. "A gente tenta amenizar, mas não é o suficiente para desenvolver nossos filhos", diz Iranice, mãe do autista Paulo Igor, de 12 anos.

Quando conheceu o filho de Barbosa, a ex-escriturária Verônica de Souza Lorenzetti chorou. Ela viu nele a chance que seu filho, Iago, também de 9 anos, não teve. O diagnóstico do autismo associado ao retardo mental só veio quando ele tinha 5 anos. "Fico como num jogo de pingue-pongue, de um lado para o outro em busca de tratamento. Só surgem pequenas coisas, que não dão resposta, só fazem de conta e me deixam ainda mais angustiada".

Iago até hoje não fala. Desenvolveu comportamentos obsessivos e humor instável. Há pouco tempo, Verônica conseguiu um tratamento do outro lado da cidade, na zona norte, mas teve de abandoná-lo por causa da distância. "Eu não sei por que só existe política para criança especial com Down ou paralisia cerebral. Eu já desisti de ir a palestras. A gente vê tantas coisas que existem que poderiam melhorar a vida deles, mas não tem acesso a elas", queixa-se. "Eu só tenho esperança na Justiça agora. Ainda estou correndo contra o tempo. Meu filho tem 9 anos, mas ainda há muitas coisas que ele pode aprender."