Título: As fotos que os EUA esconderam
Autor: Angela Perez
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/07/2005, Nacional, p. A16

Numa noite chuvosa em Watertown, Massachusetts, há cinco anos, um homem saiu com seu cachorro para passear e encontrou na sarjeta, na frente da casa de um vizinho, uma pilha de lixo - colchões velhos, caixas de papelão, lâmpadas quebradas. Sua vista bateu numa mala cinzenta antiga e ele a abriu. A mala estava forrada de fotos em branco e preto, sujas, com dobras. Ele ficou surpreso com as imagens: prédios arrasados, vigas retorcidas, pontes destroçadas, poucas pessoas circulando - cenas de uma cidade destruída. Ele fechou rapidamente a mala e a levou para casa. Na mesa da cozinha, uma inspeção das fotos confirmou as suas suspeitas. Estava olhando os efeitos do primeiro ataque atômico. Eram de Hiroshima. A mala tinha 701 fotos. Elas registram a paisagem devastada: um lugar vaporizado por uma nova forma de guerra. Agora, 60 anos depois do bombardeio de Hiroshima, pode-se reconstituir a história de como as fotos foram tiradas e o que aconteceu com elas desde então.

Às 8h15 de 6 de agosto de 1945, um avião B-29 lançou uma bomba de urânio sobre Hiroshima. Dezenas de milhares de pessoas, na grande maioria civis, morreram, muitas delas instantaneamente vaporizadas no calor da explosão ou queimadas até a morte pela bola de fogo que varreu a cidade. Outros milhares morreriam de doenças causadas pela radiação nos meses e anos seguintes.

Um membro da equipe de cientistas americanos que sobrevoou a cidade 31 dias depois da explosão disse à New Yorker: "Havia apenas uma enorme cicatriz plana, vermelho-ferrugem, e nenhum verde ou cinza, porque não sobraram telhados nem vegetação. Ali eu tive certeza de que nada que pudesse ver mais tarde me chocaria."

Não foi por acaso que poucas fotos da cidade foram publicadas. Pouco mais de um mês depois de o Japão se render, o governo americano impôs um rígido código de censura à nação. Ele dizia, em parte: "Nada que possa diretamente, ou por inferência, perturbar a tranqüilidade pública deve ser impresso." O governo dos EUA estava ciente das emoções de pesar e ódio que poderiam ser desencadeadas no Japão com a circulação de imagens da cidade destruída; provavelmente se preocupava também em manter secretos os efeitos físicos de sua nova e terrível arma. Mas essa supressão de evidências visuais serviu também para um terceiro propósito: ajudou - no Japão, nos EUA e no mundo em geral - a inibir qualquer questionamento da decisão de usar a bomba.

A falta de evidências visuais dos efeitos da bomba nos ajudou a esquecer seu impacto devastador. Hiroshima se tornou, como escreveu a romancista Mary McCarthy em 1946, "uma espécie de buraco na história humana".

Estas imagens, tiradas durante as semanas seguintes ao bombardeio, mostram uma paisagem assustadoramente deserta e calma. Mas por que elas foram tiradas e por quem? Don Levy, o homem que encontrou as fotos, vive em Watertown, arredores de Boston. Ele é dono do restaurante Deluxe Tower Diner. A multidão do almoço vai se dispersando enquanto conversamos. "Quando abri a mala naquela noite, soube o que estava vendo quase de imediato", diz. "Algumas fotos traziam 'Hiro' escrito nas bordas."

Daryl, sua esposa, juntou-se a nós. "A coisa que mais me abala nas fotos é o que não está lá", diz ela. "São as ausências. E odeio dizer, mas aquelas vigas retorcidas e ruínas me lembram do 11/9. Sabemos o que fizemos em Hiroshima, mas simplesmente não queremos pensar nisso. Creio que é mais fácil não pensar."

Decidimos visitar a prefeitura e verificar os nomes de todos os moradores da casa em frente da qual Levy havia encontrado as fotos, começando pela época em que ela fora vendida pela última vez, em 2000, e retroagindo aos anos 50. De volta ao restaurante, jogamos os nomes no Google em seu computador e descobrimos o número telefônico local do homem que vendera a casa em 2000.

A voz na outra ponta da linha estremece com o choque. "As fotos? De Hiroshima? Vocês estão com elas? Achei que estavam no meu porão! Devo ter jogado fora por acidente quando estava tirando a tranqueira. Nunca iria me desfazer deliberadamente delas. Eu as carrego comigo desde 1972!"

É Mark Levitt, um homem de 50 e poucos anos. Ele comprou a casa em 1983, viveu nela alguns anos com a esposa, e depois a alugou. Em 2000, ele a vendeu. "Recebi as fotos de um amigo no início dos anos 70, quando estava vivendo perto de Nova York", contou. "Éramos recém-formados na universidade, e meu amigo estava trabalhando como pintor de casas. Acho que ele as encontrou quando estava fazendo um serviço. Seja como for, elas estavam simplesmente largadas por lá. Eu fiquei fascinado por elas, não parava de olhar."

Ele prossegue: "Vemos morte e desastre o tempo todo na TV, mas essas fotos são diferentes. Não representam o horror, exatamente, porque não há corpos. São clínicas. Mas seu poder é realmente intenso. Por quê? Acho que é porque não posso evitar de me colocar atrás da lente. O que estaria sentindo o sujeito quando tirou as fotos?" Levitt promete tentar encontrar o amigo que não vê há 25 anos, para saber se ele descobriu mais alguma coisa.

O Japão se rendeu aos Aliados em 14 de agosto de 1945. No dia seguinte, o imperador Hiroito anunciou a derrota e conclamou os súditos a "suportar o insuportável e tolerar o intolerável". O inimigo, disse, havia usado pela primeira vez "bombas cruéis" para matar e mutilar.

No mesmo dia, o presidente Truman encarregou o Levantamento de Bombardeio Estratégico para o Teatro de Guerra do Pacífico, dos EUA, de quantificar os efeitos das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki. Montou-se uma Divisão de Danos Físicos formada por 150 engenheiros, especialistas em material bélico, intérpretes, fotógrafos e desenhistas. Do fim de outubro ao fim de novembro de 1945, os membros da Divisão de Danos Físicos varreram Hiroshima, traçando percursos da explosão, avaliando os estragos da bomba e analisando a destruição física da cidade. No fim de novembro, eles ainda tropeçavam em esqueletos humanos. A equipe tirou fotos para documentar seus resultados. Foram essas fotos que acabaram no lixo em Massachusetts.

As poucas imagens da cidade publicadas na imprensa americana da época eram principalmente instantâneos aéreos e paisagens genéricas. As únicas outras fotos conhecidas de Hiroshima depois da bomba são de Yoshito Matsushige, um fotógrafo do jornal Chugoku. No dia em que a bomba foi lançada, Matsushige circulou pela cidade por três horas. Mais tarde, quando as forças americanas tentaram confiscar todas as fotos tiradas em Hiroshima depois do bombardeio, Matsushige escondeu seus negativos, fez alguns positivos e os passou furtivamente a correspondentes americanos visitantes. Só cinco imagens tiradas naquele dia sobreviveram (ver duas abaixo).

Uma semana depois que encontrei Levitt, ele torna a ligar. "Falei com meu amigo ontem à noite", diz ele. "Ele se lembrou de ter feito um serviço de pintura numa casa que tinha sofrido um incêndio e a família estava se desfazendo das sobras. Ele identificou uma caixa de madeira com palavras em japonês e lembrou-se de ter levado a caixa para casa. Dentro estavam as fotos. Ele ainda guarda a caixa e eu imagino que fiquei com as fotos." Mais uma semana e chega um e-mail com fotos da caixa. Nela está o nome do tenente Robert L. Corsbie. Uma verificação nos registros do Departamento de Guerra revela que Corsbie era oficial da Marinha e membro da Divisão de Danos Físicos. Ele esteva em Hiroshima entre 8 de outubro e o final de novembro.

Duas vezes abandonadas, duas vezes resgatadas, as fotos, como Hiroshima, são algo de que poderíamos querer nos livrar, mas não conseguimos.