Título: Hiroshima 60 anos depois da bomba
Autor: Angela Perez
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/07/2005, Nacional, p. A16

As bombas atômicas lançadas por aviões americanos em Hiroshima e Nagasaki mataram mais de 230 mil pessoas, mas nem todas morreram calcinadas imediatamente após as explosões. Milhares padeceram no decorrer do fatídico ano de 1945. Outras morreram nos anos seguintes com doenças provocadas pela radiação. Os que tiveram a sorte de sobreviver aos únicos ataques já feitos com bombas atômicas contra seres humanos carregam ainda hoje uma ferida aberta. São velhinhos e velhinhas que, em geral, não gostam de falar do dia do bombardeio. Sentem o preconceito de quem acha que todos eles são portadores de doenças decorrentes da radiação. Por anos, sentiram a rejeição da própria sociedade japonesa. Passadas décadas, ainda sofrem com o trauma psicológico. No sábado, 6 de agosto, fará exatos 60 anos da primeira explosão. Para resgatar a história desses sobreviventes, o Estado falou com membros da Associação das Vítimas da Bomba Atômica no Brasil. Hoje, restam 142 dos cerca de 200 sobreviventes que migraram principalmente para São Paulo.

Diz Takashi Morita, fundador da associação que em 1956 veio para o Brasil com os dois filhos e a mulher, Ayako, também sobrevivente da bomba de Hiroshima: "Houve um enorme clarão e fui lançado a uma distância de 10 metros. De repente, tudo escureceu. Era como se estivesse noite e havia uma espécie de chuva escura." Morita era policial militar, tinha 21 anos e estava a 1,3 quilômetro do epicentro da explosão. "O pano grosso da farda impediu que eu tivesse meu corpo todo queimado como os das pessoas que estavam à minha volta. Era verão e a maioria usava roupas com tecidos mais finos", conta.

A explosão o atingiu pelas costas. Ele sofreu ferimentos no pescoço, nuca e atrás das orelhas. Ao levantar a cabeça, se assustou ao ver na penumbra algumas pessoas caminhando em sua direção. "Elas levavam algo nas mãos como se fossem trapos, mas eram suas peles, que estavam dependuradas pelas unhas", lembra, ainda horrorizado com a imagem. Morita seguiu para uma colina e lá viu que Hiroshima tinha se transformado em um mar de fogo. Caminhou por horas presenciando cenas dantescas de corpos calcinados espalhados pelo chão e pessoas que gritavam por socorro. Seu quartel estava em chamas. Em sua memória ficou gravada a imagem de um soldado americano, cujo avião tinha caído em Hiroshima semanas antes, agonizando.

Morita diz que tem as sete vidas de um gato. Havia chegado uma semana antes a Hiroshima. Já escapara de um grande bombardeio em Tóquio, onde estava na academia militar. Quando seguia para Hiroshima, o trem em que estava foi atacado por um avião americano. Pontes foram bombardeadas após a passagem do trem, que acabou não sendo atingido.

Casou-se um ano depois da explosão com Ayako e no ano seguinte teve sua primeira filha. Questionado sobre se não teve medo de ter filhos por causa da radiação, respondeu rindo: "Disseram que por muitos anos não ia nascer nenhuma planta, mas logo o mato começou a crescer e as árvores a brotar, então, achei que não teria problema." Ele lembra que semanas depois, em 17 de setembro de 1945, Hiroshima foi atingida por um tufão, que destruiu os abrigos improvisados e inundou a cidade. As pessoas diziam que Deus não existia, pois, após o massacre causado pela bomba, mandara um tufão. "Hoje acredito que o tufão foi uma bênção de Deus. Acho que mandou a tempestade para levar a radiação embora, diminuir seus efeitos", lembra emocionado.

Desde 1984, ele e a mulher lutam para que os sobreviventes do Brasil recebam os mesmos benefícios dos que moram no Japão. Só os que têm condições de viajar à Ásia - cerca de 50 - recebem uma pequena ajuda do governo. A associação quer tratamento médico pago pelo Japão aqui no Brasil.