Título: Ministra deixa de ser observadora e assume o papel de militante
Autor: Lígia Formenti
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/07/2005, Vida&, p. A21

A ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, Nilcéa Freire, abandonou o posto de observadora para assumir o de militante. Depois de ficar meses sem tornar pública sua opinião, ela admite ainda com certa timidez ter ficado feliz com a proposta de descriminação do aborto, feita por um grupo criado pelo governo. Mais do que isso. Ela diz que irá, a partir de terça-feira, quando a proposta ganhar seus contornos finais, trabalhar pela sua aprovação. Na semana passada, assim que saíram as primeiras notícias de que a comissão estava prestes a concluir a minuta de projeto sobre aborto, Nilcéa marcou um encontro com o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Nelson Jobim. Ele é o mesmo que considerou inconstitucional uma medida bem menos polêmica, a dispensa do Boletim de Ocorrência para fazer a interrupção da gravidez nos casos já previstos em lei. Para o encontro, a ministra levou a tiracolo um esboço da proposta de descriminação do aborto. "Foi uma deferência", justifica. "Não é um documento formal, mas o ministro já pode analisar", completa.

O cuidado para evitar futuro mal-entendido dá uma pista de como a médica especialista em parasitose e estranha ao movimento de mulheres conseguiu, em um ano e meio à frente do ministério, arrancar elogios unânimes de feministas. O que não é fácil. "Ela não tem medo de mexer no vespeiro. E lida com maestria com o enxame que vem em seguida", diz Fátima Oliveira, integrante da Rede Feminista.

O termômetro do reconhecimento não vem apenas dos elogios. Ele pôde ser comprovado também há pouco mais de um mês, quando aumentaram os boatos de que a secretaria perderia o status de ministério. No Palácio do Planalto, choveram manifestações de apoio à ministra, elogios a seu trabalho e mensagens sobre a importância de manter a independência da secretaria.

Nilcéa também figura como a primeira brasileira a assumir a presidência da Comissão Interamericana de Mulheres (CIM), da Organização dos Estados Americanos (OEA), o primeiro organismo oficial de caráter intergovernamental para a promoção dos direitos civis e políticos das mulheres nos hemisférios Norte e Sul. Ela foi eleita em outubro, para um mandato de dois anos

FEMINISTA, SEM SER ORTODOXA

"A gente não sabe que é feminista, mais é", resume. Feminista, mas numa versão menos ortodoxa, que admite, por exemplo, durante algum tempo viver da bolsa de estudos do marido. Isso foi na década de 70. Diante do cerco que se formava no período militar contra militantes do movimento estudantil do PCB, Nilcéa e seu marido foram para a Cidade do México em 1975. Lá continuaram os estudos de Medicina. Durante dois anos, o casal viveu da bolsa de estudos que seu marido tinha na época. "O sofrimento ficava por conta da distância da família, dos amigos. O dinheiro era pouco, mas não ligávamos. Tinha 22 anos. Uma sopa de lata, uma salada já bastava", afirma.

Com o tempo, as exigências aumentaram. Hoje, aos 53 anos, Nilcéa gosta de preparar alguns pratos especiais nos fins de semana, principalmente peixes. E não come nunca no gabinete. "Faz mal à saúde." Quando a agenda permite, Nilcéa almoça em sua casa, no Lago Sul, que amigos consideram extremamente acolhedora. Um ambiente tranqüilo que abrigou há pouco reuniões de dirigentes do PT, logo que a crise do "mensalão" se instalou. "Minha casa é sempre aberta. Naquele momento, as pessoas precisavam discutir. Fiz a oferta."

A relação com o PT começou em 1989, 11 anos depois de retornar ao Brasil. Quando voltou do México, a ministra desligou-se do PCB e dedicou-se à vida acadêmica. Concluiu o curso de Medicina, fez mestrado em Zoologia e um estágio no Museu de História Natural de Paris. Professora, foi escolhida em 1999 como reitora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).

Além de Cidade do México e de Paris, a ministra morou durante um curto período no Canadá. Graças a essa experiência, ela fala inglês, francês e espanhol. Em vários episódios, foi chamada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e por Marisa Letícia para encontros com autoridades internacionais. A fluência, no entanto, não é a mesma na direção. Apesar de ter habilitação, a ministra não dirige. Em Brasília, anda com motorista. No Rio, onde mantém um apartamento em Copacabana, usa táxi ou anda a pé.

Na casa do Rio, moram seus dois filhos. O mais velho de 28 anos, é engenheiro, e o mais novo, de 26, cineasta. As peripécias dos dois quando criança foram citadas pela ministra numa apresentação sobre mulher e educação. Ao comentar sobre as dificuldades enfrentadas pelo grupo feminino, ela lembrou que, quando fazia mestrado, seus filhos "esmurravam" a porta enquanto ela estudava.

DENTRO DOS LIMITES

As referências pessoais, no entanto, são poucas. Justamente por isso, procurou não externar sua posição sobre o aborto até que a comissão concluísse o seu trabalho. E faz uma crítica velada a quem adota posturas diferentes. Como o ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles, contrário ao aborto em casos de anencefalia - malformação que impede o feto de sobreviver, depois do nascimento. Questionada sobre a atitude, alfinetou: "Tenho cuidado para que minhas convicções pessoais não ultrapassem os limites que o cargo impõe." Entre as justificativas apontadas pelo ex-procurador, estava o fato de ele ser católico.

A ministra observa que a proibição da lei não impede que abortos inseguros sejam feitos. Ela sabe que ainda haverá muita polêmica. "É um caminho dificílimo, mas já avançamos um pouco." Nilcéia acha natural que algumas mulheres sejam contra o aborto. "Esta é uma resposta imediata, pois todos sabem que o aborto é um momento de muito conflito, de muita dor, que nenhuma mulher gostaria de fazer", diz. Ela observa que ninguém acha que essa é a solução inicial, mas cabe à mulher decidir qual a forma que ela tem para resolver seus conflitos. "É melhor que isso ocorra de forma amparada, segura."

Da mesma forma que feministas fazem elogios rasgados, no Congresso alguns parlamentares ligados a grupos religiosos sentem arrepios à simples menção do nome da ministra. Um deles afirma que, apesar da "fachada democrática", a ministra tem um "forte veio autoritário."

Alguns itens propostos durante sua gestão trazem desconforto para a Igreja. A própria questão do aborto. "Já havia recomendações para que a revisão da lei fosse feita desde 1995. De lá para cá, em 26 das 27 reuniões da Comissões Estaduais da Mulher esse pedido foi reiterado", observa Fátima Oliveira.

Mas não são só de temas polêmicos que Nilcéa se ocupa. Em seu mandato, ela procurou seguir à risca a expressão repetidas à exaustão neste governo: "transversalidade". São vários os projetos feitos em parceria com Ministério da Saúde, com Educação, Justiça e Planejamento. Com este último, a idéia é criar um sistema indicador do impacto provocado pelas políticas sociais, incluindo as ações afirmativas. "Estou mais preocupada em fazer o encanamento do que inaugurar chafariz. Minha maior intenção é lançar ações básicas", afirma.

Para a deputada Yeda Crusius (PSDB-RS), uma crítica de carteirinha de várias ações do governo, a existência de uma secretaria específica para mulheres é um formato bastante salutar. "Foi uma boa notícia a secretaria permanecer", diz.

A secretaria também foi útil para ampliar a atuação do Brasil nessa área, no cenário internacional. Nesta semana, por exemplo, o País vai sediar um encontro com ministros, parlamentares e representantes da sociedade civil de 16 países da América Latina e Caribe. No encontro, delegações vão discutir uma proposta sub-regional, na área de saúde sexual e direitos reprodutivos, que será encaminhada ao Encontro de Cúpula das Nações Unidas marcado para setembro próximo, em Nova Iorque, como parte da Assembléia Geral da ONU. "A idéia inicial é que incluir, nas metas do milênio, outros pontos de saúde feminina, além da mortalidade materna que já está mencionada", afirma a ministra.

Nesta semana, também começam as articulações para a forma como o projeto para mudar a lei de aborto será encaminhada. A ministra conta que o ideal é que o a versão seja encampada por algum parlamentar. A mais cotada para a tarefa é a deputada Jandira Feghali, autora de um projeto sobre o assunto. "É o nome natural, mas isso ainda não está definido."

A ministra, uma das pioneiras na implantação do sistema de cotas na Uerj no período em que foi reitora, afirma que a polêmica que virá nos próximos dias pode ser salutar. "As ações se discutem até se chegar a uma formulação capaz de pacificar a questão", diz. Como no caso do BO. "Se o Ministério da Saúde não tivesse proposto a norma técnica sobre estupro, a população jamais seria confrontada com o fato de que existem serviços que atendem as mulheres vítimas de violência sexual e quais os procedimentos procedimentos adotados."