Título: Cultura cigana, em vias de resgate
Autor: Claudia Ferraz
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/07/2005, Nacional, p. A23

Chaborron é menino. Drial é rio. Bidíta despundinar vudari, embora pareça uma frase inteira, significa apenas chave. O mistério em torno dos viajantes conhecidos por seus trajes coloridos e o gosto extravagante, como homens com dentes de ouro e mulheres que lêem o futuro nas mãos, persiste há séculos por causa dos poucos registros sobre sua origem. Para evitar que a cultura do povo cigano se torne rara também no Brasil, um estudo resgatou o dialeto falado por uma comunidade do nordeste de Goiás. Mestre em lingüística, o pesquisador do Instituto de Letras da Universidade de Brasília (UnB) Fábio José Dantas Melo mergulhou na cultura dos ciganos Calon, que vivem em Mambaí, cidade goiana a 250 quilômetros de Brasília, e registrou as palavras utilizadas por 114 famílias. Quer agora fazer um dicionário.

"Acho que o importante desse trabalho é tirar o preconceito contra os ciganos, mostrar outro ângulo dos costumes deles. Eles foram associados a ladrões. Mas vieram degredados para o Brasil por crimes pequenos como roubo de galinhas", defende Melo.

Segundo ele, o que se sabe sobre os ciganos, por indícios do seu idioma, o romani, é que vieram do norte da Índia. Melo conta que o grupo foi perseguido na Europa, por causa do seu modo de vida nômade e a religião baseada na natureza. "Os Calon são ciganos que vieram da Península Ibérica e foram degredados para o Brasil na segunda metade do século 16. Esse grupo foi divido em Gitanos na Espanha, Calão em Portugal e Calon no Brasil."

Em Goiás, desde a década de 1970, o grupo deixou de ser nômade e hoje totaliza mais de 2 mil pessoas. No Estado, estão situados nas regiões de Mambaí, Posse e Trindade. Aparecem também em Sousa, na Paraíba, no Paraná e em outras localidades ainda não registradas.

O ESTUDO

Para conhecer o idioma, o pesquisador visitou o povoado durante um ano e meio. Gravou as palavras usadas no cotidiano das pessoas e verificou a proximidade com o romani, língua primordial dos ciganos. Melo percebeu, contudo, uma forte influência do português, o que, para ele, pode levar à morte gradual do dialeto.

"Há um desnível entre gerações. Isso colabora para o desaparecimento da língua. Quando os mais velhos não querem que os jovens entendam, falam em calon." As crianças não aprendem a língua cigana na escola, apenas a assimilam pela transmissão oral.

Na pesquisa, Melo registrou 407 palavras. Transcreveu os sons para o alfabeto fonético internacional - tabela de símbolos que representam a variedade de sonos de todo o mundo - e depois transpôs para o sistema ortográfico da língua portuguesa. Percebeu que a língua cigana apresenta a mesma ordenação de sujeito, verbo e predicado que a língua portuguesa. Além disso, também há palavras cujo padrão de ordenação de vogais e consoantes imita o do português.

Em outras situações, as palavras ciganas aparecem soltas em frases do português. "Por causa da convivência direta com os brasileiros, a língua dos ciganos foi se tornando mista. Encontrei palavras como agurã (agora) e arguduni (algodão), que parecem muito com o português."

COSTUMES

A comunidade mora em casas de alvenaria. Os homens vivem da construção de casas para alugar, da compra e venda de carros e alguns são seguranças em fazendas. As mulheres lêem a sorte e vendem colchas e toalhas de mesa.

Muitos hábitos antigos foram preservados. "Os Calons faziam comércio de animais para carga, hoje eles adaptaram para carros."

O grupo valoriza muito a convivência familiar e, ao contrário da tradição, já aceita o casamento com pessoas de fora do grupo. Também mantém as festas. "As principais são o batizado e o casamento, como na Igreja Católica."

Para o pesquisador, o registro da língua não basta para revitalizar a cultura. "É preciso que a comunidade resgate a dignidade da etnia e o valor da sua cultura."