Título: Serenidade e firmeza
Autor: Paulo Renato Souza
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/06/2005, Espaço Aberto, p. A2

Há três semanas surgiram os primeiros sinais de um novo escândalo de corrupção, vinculado ao desvio de recursos públicos para azeitar o funcionamento do sistema político brasileiro. O que parecia no início ter dimensão restrita assumiu proporções oceânicas e atingiu o núcleo central do partido do presidente da República e o círculo de seus colaboradores mais próximos. Muitos esperavam que a crise pudesse ensejar uma reação positiva e audaciosa por parte do governo, que poderia tirar proveito para propor ao País um conjunto de reformas capazes de erradicar os mecanismos que propiciam a corrupção na vida pública brasileira. As primeiras reações do governo não só decepcionaram esses crédulos, como provocam estupefação nacional pela tentativa de negar o que já é evidente e buscar velhos slogans político-ideológicos para criar um extemporâneo fantasma de sedição. O Partido dos Trabalhadores e o governo têm insistido na negação dos fatos, baseando-se na falta de provas materiais. Essa tese foi prontamente encampada por alguns dos meios de comunicação mais importantes do País e pelos analistas do mercado financeiro tanto nacional quanto internacional e repetida por algumas importantes lideranças empresariais. É indisfarçável o desejo de não provocar tumulto na economia e preservar a figura do presidente e a continuidade do governo. Nos últimos dias, a estratégia do governo parece haver mudado. Em vez de responder à avalanche de denúncias e à consistência do crime confesso, monta-se às pressas uma teoria conspiratória, como se tudo fosse maquinação das "elites" para derrubar ou, ao menos, impedir a reeleição de um governo presidido por um ex-operário. A tese é estapafúrdia e ofende a inteligência dos brasileiros.

Em primeiro lugar, deve-se deixar claro que em sua origem ou no processo de sua revelação pública a crise nada tem que ver com as chamadas elites sociais, econômicas, intelectuais, culturais ou políticas do País. Foi provocada por procedimentos que ocorreram num círculo restrito ao segmento político da coligação que apóia o atual governo e denunciada por alguns dos próprios participantes, sem nenhuma intervenção ou provocação por parte de qualquer membro da oposição. Seus fatos mais graves não estão (pelo menos até agora) vinculados a provas materiais, mas se baseiam em confissão espontânea de crimes por um dos participantes ou em suas denúncias, que têm verossimilhança pela riqueza de detalhes e por sua posição privilegiada para ter conhecimento dos fatos.

Em segundo lugar, não havia nem há conspiradores atuantes ou motivos para a conspiração. Setores expressivos das elites nacionais se mostravam não apenas complacentes, mas claramente satisfeitos com o atual governo, dando por descontada sua continuidade no próximo pleito. No plano internacional, o prestígio e o apoio ao presidente eram notáveis, comprovados pela maneira como é recebido em muitos lugares do mundo e até mesmo pelas deferências de que tem sido objeto de parte do próprio governo americano. Nos meios financeiros em geral - tanto aqui como lá fora -, o entusiasmo com o governo era evidente, como a reação inicial à crise comprovou de forma inquestionável. Os meios de comunicação nacionais e estrangeiros se mostravam simpáticos ao governo, com algumas poucas exceções. A crítica mais contundente e ácida se relacionava ao inegável grau de ineficiência e politização da máquina pública, à parte o que ocorria na área econômica.

Os fatos estão aí e mostram de forma irrefutável que tudo o que surgiu até agora, denunciado, confessado ou comprovado, é obra exclusiva e genuína do atual governo e seus aliados. Em vez de buscar bodes expiatórios, criar conspirações mirabolantes ou reafirmar pateticamente ter uma história de campeão nacional da ética pública, espera-se que o presidente assuma com serenidade e firmeza a liderança política do País para apurar com rigor os fatos denunciados, punir os responsáveis e superar a crise provocada por seus companheiros e aliados. Que aproveite a crise para induzir o Congresso Nacional à apreciação imediata da reforma política que a sociedade reclama - que contemple, além dos mecanismos de financiamento dos partidos, o voto distrital, a fidelidade partidária e exigentes cláusulas de barreira que limitem a escandalosa proliferação de partidos políticos. Que aproveite a crise para um choque de transparência e eficiência em seu governo. Que inste o Congresso a completar a reforma previdenciária. Que envi e ao Congresso a reforma trabalhista. Que exija de sua equipe econômica medidas efetivas que levem à redução dos juros e impostos. Enfim, que governe.

A crise é profunda e grave. Ninguém quer atingir o presidente ou deseja derrubar o governo. A oposição luta na arena política e democrática para derrotá-lo nas urnas no próximo ano, com fundado otimismo, diga-se de passagem. No momento, apenas cumpre o dever de contribuir para o esclarecimento dos fatos. As únicas forças capazes de aprofundar ainda mais a crise estão vinculadas ao próprio governo: o surgimento de algum fato ainda mais grave do que os que até agora apareceram ou a comprovação material de que o presidente cometeu algum crime. Todos no Brasil esperam que tais desdobramentos não venham a ocorrer. A biografia do presidente Lula não os mereceria.