Título: Maquiavelismo inepto
Autor: Marcelo de Paiva Abreu
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/08/2005, Economia & Negócios, p. B2

Nas últimas semanas o País tem sido obrigado a aprimorar seus conhecimentos em matéria de modalidades de corrupção. Cada um vai, meio precariamente, tratando de estabelecer a sua taxonomia de práticas corruptas, com base nas revelações que resultam das investigações conduzidas pelo Congresso Nacional, pelo Ministério Público, pelo Supremo Tribunal Federal e pela Polícia Federal. Já é possível caracterizar diversas formas de corrupção, de acordo com a relação mais ou menos estreita entre o recebimento do pagamento e a obtenção, por quem pagou, dos resultados almejados. Há o caso mais tosco de pagamento direto em dinheiro ao tomador de decisões. Pouco acima na escala de sofisticação está o recebimento de presentes de amigos não tão íntimos, mas que têm negócios que dependem de decisões de governo sobre as quais o presenteado tem ou poderia ter influência. Muito mais graves, porque afeta a credibilidade das instituições de que depende a sobrevivência da democracia, são os propalados pagamentos de propinas a deputados para que aprovem projetos de interesse do governo. Tudo isso em meio à constatação, agora irrefutável, de que pagamentos não registrados legalmente são a regra, e não a exceção, quando se trata do financiamento de eleições, talvez em todos os partidos.

Essas práticas são todas condenáveis e os envolvidos devem responder por seus atos nos foros relevantes. Mas, nessa história do colapso do PT como paladino da ética, é relevante questionar não apenas os meios, mas também os fins. Muito tem sido escrito sobre maquiavelismo, quando se trata de diagnosticar os males éticos que acometeram o PT de forma avassaladora. Os expedientes corruptos utilizados pelo partido seriam justificáveis para que se assegurasse maioria parlamentar. Será que seriam?

Mesmo que se aceite a fórmula maquiavélica, cabem dúvidas quanto à qualidade dos fins, ou seja, das políticas de governo efetivamente implementadas. A solitária política bem-sucedida, a econômica, foi imposta pela fria constatação de que as alternativas levariam o País à ruína. No mais, o governo vem acumulando fracassos notáveis quanto a alcançar fins que pudessem justificar, mesmo que na ótica maquiavélica, os meios utilizados. Para citar apenas um par de exemplos, a atenção pode centrar-se nas políticas externa e de defesa.

Na política externa, terreno dominado pelo clima festivo, vêm sendo acumulados revezes importantes. Sempre houve a desconfiança de que a política sul-americana do governo tivesse pés de barro, pois era evidente a deterioração das relações com os demais membros do Mercosul e outros países da região. Além das controvérsias comerciais e trocas semanais de pontapés no Mercosul, especialmente com a Argentina, a busca de protagonismo por parte da diplomacia brasileira e, em particular, a compulsiva perseguição de um lugar no Conselho de Segurança das Nações Unidas vêm incitando a oposição de países médios como o México, a própria Argentina e a Colômbia, para citar só os latino-americanos, e a desconfiança de muitos outros. Indicação clara dessa tendência é a acumulação de derrotas nas candidaturas brasileiras a cargos de direção de organismos internacionais. O Brasil parece ter-se especializado em meter os pés pelas mãos quando se trata desse assunto. Desde 2003, só no terreno econômico, perdeu fragorosamente as disputas para secretário-executivo da Cepal, para diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) e para presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Em nenhuma das disputas o Brasil teve apoio de todos os membros do Mercosul: para a Cepal a Argentina tinha candidato (que não era Machinea); para a OMC nenhum dos parceiros votou em Seixas Corrêa; para o BID Paraguai e Uruguai votaram no candidato colombiano. Na OMC e no BID Brasília insistiu na disputa, apesar de estar claro que as candidaturas não tinham chance de vitória. A campanha por um lugar no Conselho de Segurança das Nações Unidas tampouco está com boa cara.

A política de defesa do governo tem sido singularmente inepta. A pretensa "solução" para os salários de militares foi a escolha do vice-presidente da República para a pasta da Defesa, em flagrante arrepio dos mais elementares princípios hierárquicos numa democracia. O titular da pasta foi objeto de captura por parte dos militares empenhados em pressionar o governo para que fossem honradas as levianas promessas que teriam sido feitas pelo seu predecessor. O que se vê hoje é o vice-presidente colocar-se como representante dos militares para que se viabilize a obtenção de aumento muito acima do que a área econômica estaria disposta a conceder, num quadro em que a sua falta de compromisso com a política econômica é bem conhecida. O resultado desafortunado da estratégia do Palácio do Planalto tem sido o de ressuscitar a politização das Forças Armadas. O vice-presidente é o sucessor legal do presidente em casos de impedimento, hoje improvável, mas longe de impossível. É um crítico da atual política econômica e representante privilegiado dos interesses dos militares. Não parece um quadro promissor. Fica de fato difícil entender por que, depois dos governos de Café Filho e João Goulart, da posse negada pelos militares a Pedro Aleixo em 1969 e agora com José Alencar, o Brasil precisa ter vice-presidente. Melhor seria nova escolha depois de curta vida severina.

Os fins não justificam os meios. Para os que não aceitam o maquiavelismo, quando os meios são corruptos, e para todos, quando os próprios fins não parecem fazer sentido.