Título: A integração da América do Sul
Autor: Gilberto Dupas
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/07/2005, Espaço Aberto, p. A2

Mesmo que o Mercosul supere os seus críticos problemas, o formato atual já é pequeno demais para enfrentar os desafios de escala exigidos para um bloco regional que pretenda atuar no jogo global. Já com a América do Sul poderia ser diferente: seus 13 países geram US$ 1 trilhão de PIB e abrigam quase 400 milhões de pessoas. A integração sul-americana é viável e se pode sustentar em três eixos sinérgicos principais, tipicamente transnacionais.

O primeiro é um plano de crescimento auto-sustentado para a região amazônica ¿ aliás, ou nossos países tomam conta desta imensa reserva biológica e hídrica ou outros tentarão fazê-lo. O segundo são rotas eficientes que liguem o Pacífico ao Atlântico, com grandes ganhos econômicos e pacificação de históricas tensões entre alguns países da região. O último é um acordo energético amplo envolvendo petróleo, gás, eletricidade e biomassa, além da gestão da maior reserva de água doce do planeta.

Apoiada nesses eixos, uma União Sul-Americana ¿ aos moldes da União Européia ¿ superaria questiúnculas nacionais e teria massa crítica para negociações concretas com os grandes atores econômicos globais. A região amazônica representa 44% do território sul-americano, abrangendo áreas de oito países.

Seus ecossistemas, alojados no que representa 50% das florestas tropicais do mundo, abrigam 30 mil espécies vegetais, 2 mil espécies de peixes nadam nestes 16% de toda a água doce do mundo e aí estão 15% das reservas mundiais de bauxita.

O grande desafio é promover o desenvolvimento da região em conjunto com a preservação ambiental e a utilização racional dos seus recursos naturais. As atividades econômicas amazônicas estarão sempre estreitamente vinculadas à utilização do seu patrimônio natural; o que, na ausência de uma estratégia correta, converte o desenvolvimento sustentável numa meta improvável.

Surge, assim, uma oportunidade única de revisar estilos de desenvolvimento inadequados, buscando modelos socialmente mais justos e ecologicamente mais sustentáveis.

Thomas Lovejoy, um dos mais importantes especialistas internacionais em florestas tropicais e biodiversidade, lembra que a região é um sistema ecológico que se estende por todos os países que compõem a bacia, e que só articulado num sistema transnacional regional ele poderá ser gerenciado com êxito.

A Amazônia produz metade de sua própria chuva; toda a sua espetacular biodiversidade e os recursos vivos dependem de um clima pelo qual a própria região, em boa medida, é responsável. Esses fatos levantam a perturbadora questão: que grau de desmatamento irá desencadear uma tendência irreversível de maior secura climática, com degradação definitiva do seu equilíbrio?

Os índices de desmatamento continuam altos e crescentes. O ressecamento e a maior vulnerabilidade ao fogo sugerem que o ponto limite de devastação não esteja distante. A riqueza biológica e mineral da Amazônia tem um imenso potencial econômico. Mas a motivação atual é apenas o lucro privado, as ações indutoras dos governos para direções favoráveis ao meio ambiente e aos habitantes da região ficaram para trás.

O gado vem ocupando grande espaço, bem como a soja, com grande mercado de exportação. A extração de madeira é intensa, há o imenso desafio da defesa contra a produção e circulação das drogas ilícitas e preocupam muito as conseqüências do forte avanço das plantações de soja a partir de Mato Grosso.

Todos os temas e recursos só têm sentido sinérgico se enfrentados adequadamente numa ação simultânea dos vários países que constituem a Amazônia. Tratados assim, eles significariam um importante fator da dinamização da integração sul-americana.

Quanto às oportunidades abertas pelas rotas de integração bioceânica, tem crescido muito o volume de cargas a serem movimentadas na região, especialmente a partir das novas fronteiras do Norte e Centro-Oeste do Brasil; e as saídas para o Pacífico passam a ser alternativas importantes para o incremento das exportações, especialmente em direção à Ásia.

Para tanto uma série de projetos devem ser objeto de uma agenda permanente de governos e empresas, gerando economias substanciais de fretes e dinamização da interação econômica intrapaíses.

Finalmente, quanto à integração da matriz enérgica sul-americana, o potencial hidráulico, as reservas de óleo e gás e o manejo da biomassa são ¿ em vários casos ¿ complementares e passíveis de uma ampla negociação visando à autonomia e à redução no custo da energia da região.

São exemplos o gás boliviano, o petróleo venezuelano, o potencial hídrico brasileiro e a posição estratégica paraguaia na Bacia do Prata, entre outros.

Desde que garantido o controle adequado dos impactos ambientais e sociais, esses eixos principais permitirão maximizar alternativas estratégicas e oportunidades importantes para o setor privado.

Até porque, dentro da penúria dos atuais orçamentos públicos, é a iniciativa privada ¿ induzida e regulada pelo Estado ¿ que terá de viabilizar recursos para investir em projetos que tenham lógica sinérgica e adequado retorno.

Por induzirem novos elementos de racionalidade supranacional com negociações que geram vantagens para as partes, esses eixos externos podem também funcionar como fator de amenização de inúmeras tensões locais e nacionais de difícil manejo político; um bom exemplo é o atual conflito interno boliviano.

Esses três eixos têm características transnacionais intrínsecas; podem colaborar bastante tanto para a melhora da competitividade dos países sul-americanos ¿ e de suas empresas ¿ como para fazer do bloco sul-americano um novo interlocutor de peso no cenário global.