Título: Sociedade se contradiz sobre aborto
Autor: Lígia Formenti
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/07/2005, Vida&, p. A18

Uma pesquisa do Ministério da Saúde - feita nos dias 18 e 19 de junho em 131 municípios de 25 Estados - revela diversas contradições quando o assunto é legalizar o aborto no País. Enquanto só 11% dos 2.100 entrevistados são a favor da descriminação da prática, 29% acham correta a prisão da mulher que faz aborto ilegal e 66% concordam que a decisão sobre a continuidade ou não da gravidez seja da mulher, não da lei. A descriminação deverá ser proposta por uma comissão do governo com representantes do Executivo, do Legislativo e da sociedade civil. Na segunda-feira, eles podem aprovar uma minuta de projeto de lei prevendo que o aborto deixe de ser crime.

A pesquisa mostra claramente que a população está dividida sobre a mudança nas regras: 41% avaliam que a lei não deve ser alterada e 36% são favoráveis à ampliação dos casos em que a prática é permitida - nos casos em que há ameaça de morte para a mãe ou quando a gravidez resulta de estupro.

PRISÃO OU DECISÃO?

De um lado, os entrevistados revelam uma posição bastante conservadora: 29% acham correta a prisão da mulher que faz o aborto ilegal. "É quase um terço, um número bastante significativo", avalia Fátima Oliveira, da Rede Feminista de Saúde. A maioria (65%) considera que a mulher que interrompe a gravidez em casos não previstos em lei deve receber algum tipo de punição. Mas, para 47%, a pena não deveria ser a prisão.

Dulce Xavier, do grupo Católicas pelo Direito de Decidir, analisa o fato de que a maioria (66%) concorda que a decisão sobre a continuidade da gravidez ou o aborto deveria ser exclusivamente da mulher ou do casal, não da lei. "É um paradoxo aparente." Para ela, quando o tema é aborto, as pessoas são muito legalistas. "Há tendência para aceitar o que está previsto em lei, como o aborto em caso de estupro." Simultaneamente, as pessoas em geral têm grande resistência em aceitar o fato de que o aborto pode ser uma decisão da mulher, diz.

A observação de Dulce se encaixa nos dados da pesquisa. O trabalho revela grande aceitação do aborto nos casos de anencefalia - feto sem cérebro - (78%), quando o feto não tem chances de sobreviver (77%) ou quando ele tem problema grave (62%). Há, porém, altas taxas de rejeição quando feito porque o casal não tem condição financeira (82%), o parceiro abandona a mulher (92%) ou a mulher prefere acabar os estudos ou continuar a carreira profissional (92%). "É como se todos esses motivos fossem menos importantes, um capricho da mulher", afirma Dulce.

O QUE DIZ A MINUTA

Na minuta da comissão, o aborto é descriminado até a 12ª semana de gravidez e permitido para casos de estupro até a 20ª semana. Nos casos de malformação do feto ou risco de vida, o prazo para permissão ainda não foi determinado. A minuta também estabelece regras para o procedimento médico, que poderá ser feito na rede pública ou na particular. Integrantes da comissão estão convictos de que não será fácil aprovar o projeto no Congresso. Estão conscientes também da posição titubeante da sociedade.

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) desaprovou ontem a revisão da lei. "Somos claramente favoráveis à vida de todo ser humano. Não podemos aceitar o aborto", disse d. Odilo Scherer, secretário-geral da CNBB. Para a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), a comissão tem de ter cautela. "A OAB entende que interrupção voluntária da gravidez tem hoje números altos de morte por conta da clandestinidade. Mas devemos ter cuidado para que a liberação não dê chance a outros tipos de criminalidade", disse o presidente da Comissão de Bioética e Biodireito, Erickson Gavazza.

EXCLUSÕES E RISCOS

Integrantes do movimento a favor do aborto dizem que considerá-lo crime acentua as exclusões e aumenta os riscos de saúde. O chefe do serviço de Aborto Legal do Hospital Pérola Byington, Jefferson Drezett, diz que muitas mulheres não usam métodos contraceptivos por total falta de acesso. "Não é uma escolha. Com a legalização do aborto, aumentam as chances de essa mulher adotar técnicas de planejamento familiar e não ter de passar por outras interrupções." Ele lembra que o fato de o aborto ser proibido não evitou o aumento da prática. "O País ideal é aquele que tem aborto legal, seguro e quase nunca usado."

A pesquisa também mostra a dificuldade de acesso a métodos contraceptivos. Apenas 25% dos entrevistados disseram ter acesso a algum tipo deles. Dos que tiveram filhos, 36% não os haviam planejado. "Sabemos que somente mulheres pobres correm riscos, fazem abortos ilegais em condições precárias", diz o médico Thomas Gallop, da comissão tripartite. "O SUS registra 238 mil internações, todos os anos, por complicações de abortos mal feitos."