Título: 4 anos de restrição a células-tronco
Autor: Herton Escobar
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/08/2005, Vida&, p. A20

"Nem mesmo o mais nobre dos fins justifica qualquer meio." Com essas palavras, há exatos quatro anos, o presidente americano George W. Bush anunciava uma decisão que mudaria radicalmente o caminho das pesquisas científicas nos Estados Unidos e no mundo: a proibição do uso de verbas federais para o financiamento de estudos com novas linhagens de células-tronco de embriões humanos. O discurso, que faz aniversário depois de amanhã, continua fresco na mente de milhares de pesquisadores da maior potência científica mundial, inconformados com a incapacidade de participar de uma das áreas mais desafiadoras e promissoras da biologia moderna. A intenção do presidente era evitar que dinheiro público fosse usado para financiar a "morte" de novos embriões humanos. Pela política em vigor, apenas as pesquisas realizadas com linhagens criadas antes de 9 de agosto de 2001 - para as quais "a decisão sobre vida ou morte já foi tomada" - podem receber financiamento dos Institutos Nacionais de Pesquisa (NIH) dos Estados Unidos. Um verdadeiro estrangulamento, considerando-se que a pesquisa pública americana em biomedicina depende, em sua maior parte, de recursos do NIH para sobreviver. E que o número de linhagens disponíveis, inicialmente calculado em 60, na verdade, não passa de meia dúzia.

"Enquanto isso, qualquer empresa privada - ou qualquer maluco com dinheiro, para ser bem sincero - está livre para continuar pesquisando", contesta Robert Palazzo, especialista em biologia celular do Instituto Politécnico Rensselaer, no Estado de Nova York.

O problema não é apenas técnico ou financeiro. Diante da condenação moral do governo Bush, falar de células-tronco embrionárias já virou tabu dentro dos poucos laboratórios que ainda conseguem trabalhar com elas. "Há pesquisadores que não aceitam nem falar comigo, por medo de prejudicar sua carreira", relata Kevin Wilson, diretor de Política Pública da Sociedade Americana de Biologia Celular (ASCB), organização científica que briga pela liberação das pesquisas.

Na semana passada, entretanto, a ASCB ganhou um aliado inesperado. Bill Frist, médico cirurgião e líder da maioria republicana no Senado, anunciou que mudou de opinião e passou a defender as pesquisas com células-tronco embrionárias. "Não é só uma questão de fé, é uma questão de ciência", discursou o senador. "A política do presidente deve ser mudada."

No dia seguinte, Bush retrucou: "Estou confiante de que atingi o equilíbrio correto entre ciência e ética." Um projeto de lei que autoriza o financiamento de pesquisas com novas linhagens de células-tronco embrionárias está tramitando no Senado americano neste momento, depois de ter sido aprovado na Câmara dos Representantes em maio. O presidente, porém, avisou que vetará o projeto caso ele seja aprovado.

Más notícias não só para os cientistas americanos, mas para o resto do mundo que acredita nessa linha de pesquisa. As instituições de pesquisa dos EUA são responsáveis por um terço de todo o conhecimento científico produzido no planeta. Por isso não tê-las em campo é como disputar uma Copa do Mundo com uma seleção de craques no banco. Ou como tentar conter o aquecimento global sem a participação dos EUA, responsável também por quase um terço das emissões de gases do efeito estufa na atmosfera.

"O progresso foi prejudicado no mundo todo", decreta Robert Goldman, pesquisador da Universidade Northwestern, em Chicago, e do Laboratório de Biologia Marinha (MBL), em Woods Hole, Massachusetts. "Essas células são fantásticas e todos deveriam ter o direito de trabalhar com elas."

DIFICULDADES

A impossibilidade de criar novas linhagens, segundo Goldman, é muito limitante. Cientistas em Woods Hole - um dos mais importantes centros de pesquisa em biologia celular dos EUA - revelam que, das 60 linhagens de células-tronco embrionárias humanas sancionadas por Bush em 2001, apenas 3 ou 4 estão de fato disponíveis para pesquisa. As restantes já estão velhas demais ou fora de alcance, em laboratórios de outros países ou nas mãos de particulares.

Cada linhagem representa uma cultura celular perene, derivada de uma única célula original que foi estimulada a se dividir in vitro. Coisa simples de fazer com quase qualquer célula do organismo, mas não com células-tronco embrionárias. Segundo o pesquisador brasileiro Celso Silva, da Universidade da Pensilvânia, elas existem no embrião por apenas dois dias e são geneticamente programadas para se transformar rapidamente em outros tecidos do organismo adulto. Mantê-las no estado indiferenciado em cultura por longos períodos, portanto, não é tarefa fácil. "É a coisa mais difícil que já fizemos. Ponto", resume Goldman.

Com o tempo, as linhagens vão ficando velhas e as células perdem seu estado indiferenciado primordial. Por isso a necessidade de criar novas culturas. Goldman trabalha desde 2003 com células-tronco embrionárias compradas da Universidade da Califórnia em São Francisco (UCSF) - uma das poucas linhagens aprovadas pelo governo Bush e ainda viáveis para pesquisa. O preço: US$ 5 mil cada tubinho congelado com um punhado de células. "Você tenta cultivá-las e elas morrem de repente, sem nenhum motivo. Não sabemos por quê."

O projeto de Goldman é estudar o processo de diferenciação das células embrionárias em tecidos especializados, como os neurônios do sistema nervoso. Não com a intenção de desenvolver algum tipo de tratamento, mas simplesmente para entender a biologia básica do processo. Algo que, segundo ele, só é possível com as células-tronco embrionárias.

"Mesmo que essas células nunca sejam usadas em um paciente, sua importância como ferramenta de pesquisa do desenvolvimento celular é impagável", concorda Silva, que estuda a diferenciação de células-tronco de camundongos em gametas (óvulos e espermatozóides).

Melhor ainda do que usar as células de embriões congelados, diz ele, seria produzir embriões clonados dos próprios pacientes, por meio da técnica de transferência nuclear. Foi o que fizeram recentemente, pela primeira vez, pesquisadores sul-coreanos da Universidade Nacional de Seul. Mas isso também é proibido nos Estados Unidos, assim como no Brasil.