Título: 'EUA precisam de perestroika'
Autor: Carlos Gardels e Nathan Gardels
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/08/2005, Internacional, p. A16

Mikhail Gorbachev, o último presidente da União Soviética, hoje lidera a Cruz Verde Internacional. Ele conversou com Global Viewpoint no dia 8 na sede da Fundação Gorbachev, num moderno edifício bancário na periferia de Moscou. No verão de 1985, Gorbachev apresentou as idéias do "novo pensamento" em política externa e da perestroika (reestruturação). Suas políticas de perestroika e novo pensamento sobre os assuntos globais foram anunciadas há 20 anos. Como avalia hoje os sucessos e fracassos dessas políticas?

A perestroika e o novo pensamento foram tentativas de responder ao desafio global da História - acima de tudo, a interdependência. O impulso que eles geraram e as mudanças que introduziram foram tão fundamentais que alteraram o paradigma não só para a Rússia, mas para os alicerces da ordem global. Eles afetaram a todos ao pôr fim à guerra fria e desencadear a Revolução de Veludo no leste e centro da Europa, que por sua vez levou a uma nova Europa. Eles abriram o caminho para a globalização.

A grande conquista da perestroika foi despertar e libertar o pensamento. As pessoas ficaram livres para pensar sem a limitação do medo - das autoridades ou da guerra nuclear. Pela primeira vez, tiveram direito de escolher. O efeito disso é de longo prazo e ainda não terminou. O fracassado golpe de Estado e a dissolução da URSS puseram um fim oficial à perestroika. Mas esta já atingira um ponto sem volta. Vinte anos depois, há jovens na Rússia que só conheceram a liberdade. Isto é uma grande conquista.

Houve reveses no rastro da perestroika, por causa de políticas domésticas russas que tornaram as coisas piores - como a "terapia de choque" do presidente Boris Yeltsin, um grande salto arrogante e desastroso rumo à economia de mercado. Minha idéia era que a perestroika se desenrolasse ao longo de 30 anos. Mas fui acusado de lentidão. Não estou tentando me justificar. Cometemos erros. Por exemplo, esperamos demais para reformar o Partido Comunista e a União, que se tornara um órgão administrativo em vez de uma verdadeira federação. Deveríamos ter promovido a descentralização mais rápido. A falta de ação nessa frente tornou o golpe possível.

Também houve erros do Ocidente. Quando propus a perestroika para nosso país e o novo pensamento para o mundo, a idéia começou com estas palavras: "Queremos ser devidamente compreendidos." Ainda não há compreensão suficiente da Rússia, mesmo hoje. Os EUA e a Europa deveriam ser gratos a nós e respeitar a Rússia. Mas hoje a Rússia é suspeita de tentar reconstruir seu império e tornar-se novamente um país perigoso. Isso não é verdade. No desenvolvimento da perestroika, houve inicialmente bom grau de entendimento com o Ocidente. Pensamos que uma época diferente havia chegado. Mas não chegou. A certa altura, as coisas começaram a mudar. Não culpo só os americanos. Também cometemos erros - como na Chechênia. Mas os americanos não nos tratam com o devido respeito. A Rússia é um parceiro sério. Somos um país com uma história tremenda, com experiência diplomática. É um país educado que contribuiu muito para a ciência.

A URSS costumava ser não só um adversário, mas também um parceiro do Ocidente. Havia algum equilíbrio naquele sistema. Embora os EUA e a Europa tenham assinado a Carta de Paris para uma Nova Europa, para mostrar que um novo mundo era possível, aquele pacto foi ignorado e ganhos políticos foram buscados para tirar vantagem do vácuo. A luta por esferas de influência - contrária ao novo pensamento que propúnhamos - foi retomada pelos EUA. O primeiro resultado foi a crise na Iugoslávia, na qual a Otan foi mobilizada para ganhar vantagem sobre a Rússia.

Estávamos prontos para construir uma nova arquitetura de segurança para a Europa. No entanto, depois do colapso da URSS e do fim do Pacto de Varsóvia, a Otan esqueceu todas as suas promessas. Ela se tornou uma organização mais política que militar. A Otan decidiu ser uma organização que intervém em qualquer lugar por "razões humanitárias". Vimos a intervenção não só na Iugoslávia, mas também no Iraque - intervenção sem nenhum mandato ou permissão da ONU.

Este foi o destino do novo pensamento de 20 anos atrás, que o Ocidente abraçou ansiosamente quando o anunciei. A idéia básica era que havia interesses globais acima dos interesses nacionais. Contudo, mais de 15 anos foram desperdiçados desde o fim da guerra fria, pois as nações ainda agem principalmente em interesse próprio. Acima de tudo, os EUA caíram num complexo de vitória, de superioridade. Talvez só agora, afundados no Iraque sem aliados, eles estejam começando a entender que o mundo não pode ser governado a partir de um centro que mande nos outros países. Eles precisam de sua própria perestroika para pôr fim a sua velha maneira de pensar.

Voltando a sua idéia sobre terapia de choque, uma lição seria que não existem atalhos na História? Não se pode saltar repentinamente do socialismo soviético para o capitalismo, assim como Lenin não pôde saltar de uma sociedade agrícola para o comunismo industrial?

Exatamente. A terapia de choque foi bolchevismo ao contrário. O Ocidente, claro, aplaudiu a tentativa de Yeltsin na desventura desse atalho histórico. Em vez de ser a pessoa que destruiu o comunismo, ele foi a pessoa que arruinou um enorme país.

O sr. falou sobre a perestroika libertando o pensamento. Ironicamente, um dos maiores beneficiários da adoção da liberdade de pensamento pela Rússia, Alexander Soljenitsin, agora diz que o liberalismo está destruindo a cultura russa. Para ele, há liberdade demais. Ele condena o crime, o mercantilismo, a permissividade e a revolução sexual que envolvem a Rússia hoje.

Soljenitsin fez esta declaração: "Foi a glasnost (transparência) de Gorbachev que arruinou tudo." Sem a glasnost, ele ainda estaria vivendo no exílio em Vermont, cortando madeira. Aprecio muito a contribuição de Soljenitsin para a liberação da Rússia. Não há dúvida de que ele teve a coragem, em Arquipélago Gulag, de falar durante a guerra fria de coisas que outros não se atreveriam a mencionar. Mas então penso no modo como voltou à Rússia - ele se via como um profeta retornando triunfal. Ele esperava ser capaz de dar expressão ao povo. Mas estava fora de sintonia.

É claro que muitas coisas que ele diz são justas e corretas - por exemplo, sobre o vergonhoso abismo entre ricos e pobres na Rússia. Ele está certo ao condenar os oligarcas, assim como a volta ao poder do exército dos burocratas, muitos dos quais são os mesmos que dirigiam a URSS. Mas os problemas da Rússia não são provocados pela democracia, e sim pela falta desta. Eles ocorrem porque os controles mútuos democráticos, as instituições democráticas, não se firmaram. Só a democracia pode responder aos temores que Soljenitsin expressa, e não uma mão forte, como ele quer. Já passamos por isso. É uma esperança vã.

No Ocidente, tem-se a impressão de que Vladimir Putin tenta restaurar a mão forte do poder centralizado que Soljenitsin deseja. É isso?

Não creio que o Ocidente entenda o que enfrentamos na Rússia historicamente - três séculos de domínio mongol, servidão, comunismo. A Rússia é um país vasto cuja administração não pode ser totalmente descentralizada. É preciso buscar um delicado equilíbrio entre a descentralização e a centralização para manter a estabilidade. Sob Yeltsin, tivemos descentralização sem controle. Isto não criou mais democracia, e sim feudalismo regional. Putin agiu certo ao pôr fim a esse sistema e forçar os líderes regionais a adaptar suas leis às leis nacionais.

Hoje temos os pré-requisitos para seguir adiante e concluir as reformas da Rússia. Putin propôs um programa político para os próximos anos que inclui o combate à pobreza, a promoção das pequenas e médias empresas e ajuda para levar a base industrial russa ao pós-industrialismo. Este é o rumo certo. Mas permanece a questão: quem implementará essas metas? Infelizmente, o gabinete e o Parlamento atuais são incapazes de fazê-lo. Este é o problema. Sua reforma do sistema de benefícios sociais foi um desastre que teria deixado viúvas e veteranos na rua, só com trocados no bolso. Putin teve de intervir pedindo que o governo revisasse essas reformas mal pensadas. Talvez pela primeira vez, há agora um debate sério sobre o futuro da educação e saúde. Esta ativação da sociedade civil é nova para a Rússia. É disso que precisamos.

Alexander Yakovlev, seu antigo colega de Politburo durante a perestroika e a glasnost, afirmou que, com Putin, vemos uma "restauração da nomenklatura" (classe burocrática privilegiada) que existia na era soviética. Isso não é verdade?

Não creio que Putin esteja restaurando a velha nomenklatura. É verdade que as pessoas pedem que Putin combata a burocracia. Não é verdade, no entanto, que Putin queira restaurar o poder no estilo soviético.

Zhao Ziyang, líder reformista chinês falecido este ano, foi expurgado após a repressão do movimento pró-democracia na Praça da Paz Celestial por, entre outras coisas, comunicar-lhe "segredos de Estado" durante sua visita ao país em junho de 1989, imediatamente antes do massacre. Aparentemente, Pequim preocupava-se porque Zhao lhe revelara que Deng Xiaoping, formalmente aposentado, ainda exercia poder. O que ele lhe disse?

É uma acusação ridícula. Zhao apenas sublinhou para mim que a China trabalhava sobre a base da liderança de Deng e era muito importante continuar a linha de reforma estabelecida por ele. Havia um debate na época entre os líderes chineses sobre como pôr fim à ocupação da praça pelos estudantes. Sabíamos que eles estavam discutindo a situação, mas não interferimos. Cheguei a afirmar que a situação deveria ser controlada politicamente e que confiava numa solução política. Infelizmente, eu estava errado.

A visão dos líderes chineses hoje é que a Rússia mergulhou no caos e estagnação porque a democratização atrapalhou a reforma econômica.

É tolice dizer que o crescimento da China resulta da falta de democracia, isto justificaria o massacre da Praça da Paz Celestial. A China está crescendo porque o curso geral de reforma traçado por Deng - abertura para o mundo exterior em comércio e investimento estrangeiro - permanece constante e sustentado há décadas. Apesar do tremendo sucesso da China, no entanto, centenas de milhões de pessoas ainda vivem perto da pobreza absoluta. Inevitavelmente, a China ainda terá de enfrentar a questão da democracia e da reforma política. Como na Rússia, o alto nível de educação das crescentes classes profissional e média simplesmente exige isso. Talvez os líderes chineses estejam começando a entender esse ponto. Há poucos anos, os chineses não permitiam a publicação de meus livros no país. Agora permitem. Isso significa que algo está acontecendo. Todos nós deveríamos ajudar a China a avançar gradualmente, passo a passo, sem provocar reações negativas. A pior coisa seria uma nova ruptura tipo Revolução Cultural. Eles estão certos por ser cautelosos. Terapias de choque e revoluções culturais tornam qualquer problema pior.

A principal lição seria que a mudança histórica precisa acontecer gradualmente, para que as pessoas possam absorvê-la adequadamente? Rupturas radicais minam a mudança e provocam uma reação?

Sim, de fato. Veja o que aconteceu quando os franceses votaram contra a Constituição européia. Não é que os franceses sejam contra uma Europa unida. É que estão preocupados com os problemas que se multiplicaram na União Européia, porque a ampliação do bloco aconteceu rápido demais. As pessoas concluíram que a Constituição daria poder às elites governantes para tomar decisões sobre seu futuro sem consultá-las. O passo da mudança é sempre o problema número 1 em qualquer reforma. Em nosso caso, foi imposto na União Soviética um ritmo de mudança que a sociedade não podia sustentar.

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