Título: Serviço secreto brasileiro, à prova de presidentes
Autor: Lucas Figueiredo
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/08/2005, Aliás, p. J3

Poucas pessoas têm hoje tantos problemas quanto Luiz Inácio Lula da Silva. Sua conduta pessoal é questionada, seu partido está encolhendo e sua biografia estará maculada para todo o sempre por uma série de episódios que envolvem malas de dinheiro e dólares na cueca. Lula nunca esteve tão fraco. Nem quando foi preso pelo Dops, em 1980, amargou 31 dias de cadeia e foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional. O homem está deprimido. Isolou-se! Em seus discursos, fala cada vez mais na mãe, Eurídice, já falecida. E quando o faz chora. No meio desse tiroteio, dias atrás, quando dormia o sono possível daqueles que estão permanentemente sob pressão, Lula foi acordado por um telefonema. Eram quase 3 horas, e ele estava em Paris. Do outro lado da linha, mais um problema. Um ministro lhe informou que Mauro Marcelo de Lima e Silva, o chefe do serviço secreto - a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) - tinha pisado no tomate. Numa mensagem dirigida a seus subordinados, por meio da intranet, MM chamara a CPI dos Correios de "picadeiro" e seus integrantes de "bestas-feras". Lula ainda tentava acordar quando seu interlocutor deu a paulada: "O pior, presidente, é que a mensagem vazou para o Congresso, e agora os deputados e senadores estão furiosos, querendo a cabeça do Mauro Marcelo". Lula, contudo, não conseguiu segurar a onda. Mandou que o ministro resolvesse o problema com os senadores Aloizio Mercadante (PT-SP) e Romeu Tuma (PFL-SP) e, depois, voltou a dormir.

Esse episódio ilustra com perfeição a incapacidade do presidente da República em dar um rumo à instituição que, há 49 anos, significa uma pedra no sapato do Estado Democrático de Direito. Sob Lula, o serviço secreto está à deriva, atuando com perigosa autonomia, exatamente como aconteceu nos governos de Juscelino Kubitschek (1956-1961), Jânio Quadros (1961), João Goulart (1961-1964), Castelo Branco (1964-1967), Costa e Silva (1967-1969), Emílio Médici (1969-1974), Ernesto Geisel (1974-1979), João Figueiredo (1979-1985), José Sarney (1985-1990), Fernando Collor (1990-1992), Itamar Franco (1992-1995) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2003). E por que Lula não domou o tal "monstro", como definiu seu criador, o general Golbery do Couto e Silva? Simples: por temor.

Antes de virar governo, o PT patrocinara muitos e bons projetos de lei - alguns deles de autoria de José Dirceu e José Genoino - que visavam reformar o serviço secreto. Previam, entre outras medidas, a "desmilitarização" do órgão e o fim das operações de arapongagem contra cidadãos brasileiros. Assim, a exemplo do que acontece nos países democráticos e desenvolvidos, como França, Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha, o serviço secreto passaria a ser de fato civil e seria destinado exclusivamente a investigar o "inimigo externo" (ou seja, espiões estrangeiros, terroristas, sabotadores, piratas industriais e de materiais biológicos etc.).

Em todo o mundo, os serviços secretos atuam com métodos ilegais e jogo sujo, tais como grampo telefônico, chantagem e uso de "andorinhas" (agentes que seduzem seus alvos para obter informações). Exatamente por isso, os países mais cuidadosos optam por deixar seu serviço secreto, digamos, do lado de fora da casa ou no máximo no quintal, tomando conta do portão. É o caso, por exemplo, da CIA. Os agentes que lá trabalham têm autorização para barbarizar em praças como Bagdá, Kandahar ou Bogotá, mas não podem sequer pensar em levantar o número de identidade de um cidadão norte-americano. Quem faz isso é o FBI, equivalente à nossa Polícia Federal.

No Brasil, é diferente. Nosso serviço secreto está solto na sala, pisando no sofá, quebrando os cristais e, não raro, mordendo os donos da casa - que o diga FHC, flagrado por um grampo telefônico, feito por agentes da Abin, combinando detalhes da privatização da Telebrás, um negócio de R$ 22 bilhões.

A autonomia do serviço secreto é um dos pontos que impedem a conclusão da transição democrática. Há 20 anos, portanto, saímos da ditadura e, até agora, não conquistamos a democracia plena, justamente porque, entre outros motivos, o "monstro" está solto na sala.

Historicamente, o serviço secreto brasileiro vive de proteger os presidentes da República, que são transitórios, quando na verdade deveriam defender o Estado, que é perene. Quando o órgão foi confrontado pelos presidentes, acabou por se voltar contra eles.

Alvo do serviço secreto no passado, Lula hoje não comanda a Abin - oficialmente, um órgão da Presidência da República. É o mínimo que se pode dizer pela análise do relatório final do 1º Encontro de Serviços de Inteligência da América do Sul, realizado em outubro de 2003. No documento - carimbado como confidencial -, a Abin se compromete, com seus parceiros, a trocar informações relacionadas a algumas "áreas de trabalho". Uma dessas áreas é o "crime organizado internacional". Outra, os "movimentos que abordem a questão da pobreza". Ou seja, para o serviço secreto brasileiro, a bandidagem e os movimentos sociais merecem o mesmo nível de atenção. São alvos a ser permanentemente monitorados. Enquanto Lula se apresenta, interna e externamente, como um líder do combate à pobreza, seu serviço secreto vai no caminho oposto, tratando os movimentos sociais como inimigos em potencial. Algo está fora do lugar.

Nesta semana, Lula indicou o substituto do desastrado Mauro Marcelo de Lima e Silva. Trata-se de Márcio Paulo Buzanelli, agente veterano do SNI, com quase 30 anos de serviço secreto. Buzanelli ainda será sabatinado pelo Senado, mas a aprovação de seu nome é praticamente certa. Sua principal tarefa será pacificar as facções internas da Abin, que, nos últimos anos, vêm se digladiando por poder, numa batalha em que a principal vítima, até agora, tem sido o presidente da República.

Ao fragilizado Lula, só resta cruzar os dedos e torcer para que, na horta da Abin, não brote mais nenhum pepino. Ao país, resta esperar por um presidente que tenha coragem de mexer nesse vespeiro e desentorte de vez o serviço secreto, reformando a instituição. Lula, definitivamente, não será esse homem.