Título: Depois de 4 anos, Cade vai julgar as compras da Vale
Autor: Isabel Sobral
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/08/2005, Economia & Negócios, p. B6

Um dos mais importantes julgamentos da história do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) está marcado para esta semana. Na quarta-feira, depois de quatro anos de análises no governo, os conselheiros darão a palavra final sobre um conjunto bilionário de sete negócios da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). Especialistas já consideram esse um megajulgamento, capaz de ofuscar outras decisões polêmicas que já passaram pelo órgão, como a fusão entre a Brahma e a Antarctica e o recente veto à compra da Garoto pela Nestlé. A avaliação não é unânime, mas há concordância de que em poucas situações no conselho houve tanta agitação nos bastidores e tanto bate-boca público como no caso da Vale. O que vai a julgamento é a compra, pela Vale, de cinco mineradoras independentes. Os negócios ocorreram entre 2000 e 2001. Também serão avaliados contratos que permitiram à Vale desfazer associações com a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), o que os técnicos chamam de "descruzamento de participações acionárias". Os conselheiros do Cade vão avaliar se os negócios ferem ou não as condições de livre concorrência entre as siderúrgicas.

Uma primeira análise já foi feita pela Secretaria de Direito Econômico (SDE) do Ministério da Justiça, que elaborou um parecer para subsidiar a decisão dos conselheiros do Cade. A SDE sugeriu que os negócios sejam aprovados, mas com algumas restrições. Ela propôs que a Vale perca o direito de preferência na compra do excedente de produção da mina Casa de Pedra, da CSN. Essa preferência foi uma cláusula negociada no descruzamento acionário entre as duas empresas.

Outra condição sugerida pela SDE é que a Vale venda 18% das ações que possui na ferrovia MRS, por onde escoa o minério de ferro destinado à exportação. Hoje a Vale controla a ferrovia Vitória-Minas e também a MRS, por isso as demais siderúrgicas queixam-se da predominância dela na logística.

É em torno desses pontos que a Vale e as demais siderúrgicas têm se confrontado. É uma decisão tão relevante do ponto de vista econômico que a presidente do Cade, Elizabeth Farina, fez várias reuniões com os interessados, entre eles os presidentes da CVRD, Roger Agnelli, e da CSN, Benjamin Steinbruch. Desses encontros participaram todos os conselheiros. Eles têm em mãos mais de uma dezena de pareceres e assistiram a uma verdadeira romaria de consultores e advogados nas últimas semanas.

Com a iminência do julgamento, a temperatura subiu. Na semana passada, Agnelli insinuou que "mexer na Vale é mexer no Brasil". Steinbruch, por sua vez, disse que o Cade deve ser mais duro com a Vale do que o sugerido pela SDE. "A SDE foi um Papai Noel." Ele quer que a Vale seja obrigada a vender a totalidade de suas ações na MRS. Do contrário, terá poder de fogo suficiente para impor os preços do frete e atrapalhar suas concorrentes. Ele acrescentou que tem R$ 1 bilhão em investimentos já iniciados, aguardando a decisão do Cade.

Na visão do ex-presidente do Cade Ruy Coutinho, o posicionamento do conselho nesse caso será vital por se tratar da companhia brasileira com melhor desempenho internacional e da maior fornecedora do minério de ferro - matéria-prima essencial à produção do aço, que é largamente utilizado pelas indústrias automobilística, eletroeletrônica, construção civil e até a de embalagens (de alumínio). "Sem dúvida, será o julgamento mais rumoroso e paradigmático, do ponto de vista econômico, que passou no Cade por causa do grande efeito multiplicador", afirma o consultor, um dos contratados pela Vale para formular parecer ao conselho.

O também ex-presidente do Cade Gesner Oliveira, consultor da CSN nos processos, argumenta que a relevância dessa análise se relaciona ao fato de ser um pacote de aquisições e eliminação de participações acionárias cruzadas com impacto no acesso das grandes empresas aos "corredores de escoamento" da produção nacional para o mercado externo.

"A logística hoje está no coração das decisões de investimentos de longo prazo, por isso a decisão do Cade pode sinalizar a potenciais investidores se haverá ou não acesso à infra-estrutura básica como ferrovias e portos no futuro", opina o consultor.

O efeito multiplicador na economia não deve ser desprezado, diz Gesner, já que o preço do aço tem grande influência na inflação. "O caso afeta mais a vida do consumidor do que se pensa. Vários desses preços finais são considerados pelos índices de inflação, como os IGPs, que servem de referência para reajustes de contas de telefone ou energia elétrica."

EXPORTAÇÕES

A enorme presença da Vale no mercado internacional, por outro lado, acaba diluindo esse efeito na economia brasileira, contra-argumenta um dos advogados da Vale no Cade, José Del Chiaro. Ele argumenta que 85% do faturamento da mineradora vem das suas exportações e 49% do minério consumido na produção do aço brasileiro é fornecido pela companhia.

Todo o minério restante seria abastecido pelas minas próprias das siderúrgicas e outras pequenas mineradoras. "O que não coloca o mercado interno em risco", diz Del Chiaro, que considera excessiva a importância dada ao julgamento no Cade pelo efeito econômico, mas não pelo tamanho das empresas.

A Vale tem sustentado que, se for obrigada a se desfazer de propriedades, haverá uma quebra da cadeia integrada - minas, ferrovias e portos - que reduzirá seu desempenho no mercado mundial, trará perdas aos investidores (especialmente os quase 600 mil trabalhadores que usaram parte do FGTS para comprar ações da empresa em 2002), prejudicará o saldo comercial brasileiro e sem nenhum benefício ao mercado doméstico. "Entendemos que há outros interesses por trás do discurso da concorrência interna, como a oportunidade de aquisição de ativos sem grandes investimentos", reforça o diretor-executivo de Ferrosos da Vale, José Carlos Martins.

O vice-presidente do Instituto Brasileiro de Siderurgia (IBS), Marco Pólo de Mello, reage às acusações. Para ele, a concentração da Vale é "irrefutável" e deixa o segmento siderúrgico vulnerável, sem alternativas de fornecedores de minério. As argumentações da Vale, para ele, têm apelo mais emocional do que técnico. Ele afirma que o setor siderúrgico também é um grande exportador brasileiro, além de ser o elo da cadeia produtiva afetada pelo preço do aço. "Essa emocionalidade da Vale, portanto, não se sustenta", diz o executivo.