Título: O exercício da liderança
Autor: Rubens Barbosa
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/08/2005, Espaço Aberto, p. A2

A recente reunião de Assunção do Conselho do Mercosul, que reúne os presidentes dos países membros, e a atitude de nossos parceiros no tocante às eleições para o Conselho de Segurança da ONU e para a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) propiciam nova ocasião para algumas reflexões sobre a situação atual e as perspectivas do grupo regional e da política brasileira para a América do Sul. Na impossibilidade de retomar a iniciativa de recuperação do Mercosul, os países membros voltaram a usar a retórica e as declarações de intenções de muito pouco efeito prático e nenhum efeito político, na tentativa de mudar a percepção dos operadores econômicos sobre a pouca relevância do grupo regional.

Exemplo disso são a proposta para criação de fundo para financiar investimentos, a aprovação do acordo de sede para o funcionamento do Tribunal Permanente de Revisão e a declaração de apoio à construção da Comunidade Sul-Americana de Nações.

Quando se analisam a crise e o desgaste por que passa hoje o processo de integração no Cone Sul, é conveniente separar o Mercosul institucional do Mercosul comercial. As dificuldades para a afirmação do Mercosul como um grupo regional com credibilidade e com um conjunto de regras estáveis que possa ser um instrumento útil para empresas nacionais e estrangeiras derivam de aspectos institucionais decorrentes da aplicação do Tratado de Assunção, que criou o Mercosul.

O seguido descumprimento do tratado pelos países membros e a gradual ampliação do comércio administrado com acordos de restrição voluntária, negociados por diversos setores empresariais, vão criando mais e maiores obstáculos para a ampliação do livre comércio. Essa situação tende a agravar-se com a proposta da Argentina e agora do Paraguai de criar novas medidas restritivas, como salvaguardas, ao arrepio da letra e do espírito do tratado.

A percepção de que o Mercosul está patinando e deixando de ser atraente para os países membros deriva, no fundo, da falta de vontade política das partes para definir prioridades visando a corrigir desvios institucionais e aprofundar a integração. Falta uma diretriz comum, como a proposta pelo Brasil em dezembro de 2003, para buscar a efetiva implementação da União Aduaneira, com o fim das perfurações e a dupla cobrança da Tarifa Externa Comum (TEC), dos Regimes Especiais de Importação e a internalização das regras aprovadas pelos quatro países membros.

O Mercosul comercial, por outro lado, vai bem. As trocas comerciais entre os quatro países membros se ampliaram significativamente nos últimos dois anos e alcançaram em 2005 níveis equivalentes ao recorde histórico registrado em 1998, antes das crises no Brasil e na Argentina.

Os contenciosos comerciais são conseqüências mais da baixa competitividade dos produtos argentinos do que da agressividade das empresas exportadoras brasileiras, às voltas com o câmbio apreciado e com altíssimas taxas de juros.

Essas questões estão sendo resolvidas de comum acordo e, apesar de desvio de comércio em alguns produtos, em favor do Chile e da China, não são fatores impeditivos para o incremento global das exportações brasileiras, até porque não representam mais de 5% do intercâmbio bilateral com a Argentina.

O Mercosul aproxima-se da hora da verdade. Como nenhum governo ousará expor-se ao risco político de propor seu término, o dilema é saber se ele permanecerá irrelevante ou se de fato se transformará numa alavanca para o progresso da região.

Apesar da retórica pró-integração e pró-Mercosul do governo Lula, o Itamaraty parece estar na defensiva e sem propostas próprias para responder aos desafios do momento.

Se o processo de integração fosse, de fato, uma prioridade política, agora seria o momento de o Brasil reconhecer a crise institucional do Mercosul e adotar uma atitude proativa com o objetivo de modificar essa situação.

A iniciativa brasileira poderia desdobrar-se em diversas ações concretas e de impacto, como, por exemplo, a convocação ¿ conforme previsto no artigo 47 do Protocolo de Ouro Preto ¿ de uma conferência diplomática para discutir a situação e, se for o caso, modificar o Tratado de Assunção.

Por outro lado, poderia dar início ao exame do sistema decisório, um dos aspectos mais difíceis para o Brasil num processo mais profundo de integração no âmbito do Mercosul.

O atual sistema de tomada de decisão por consenso não poderá sustentar-se, caso haja avanços significativos na direção de um mercado comum. A exemplo do Mercado Comum Europeu, em seu início, o sistema de voto ponderado terá de ser introduzido para que, na defesa do melhor interesse nacional, o Congresso brasileiro possa aprovar um futuro acordo.

A baixa prioridade do Mercosul para o atual governo brasileiro tem recebido duras respostas de nossos parceiros, que passaram a rechaçar a liderança brasileira na região. Repetidamente anunciada pelo governo Lula, essa liderança nunca foi tão contestada.

A política brasileira na América do Sul e no Mercosul terá de ser profundamente revista, de modo a restabelecer uma atitude positiva e cooperativa. Não se pode seguir com sonhos irrealistas de liderança e de hegemonia, desmentidos a cada momento pelos fatos, como vem ocorrendo na eleição do Conselho de Segurança da ONU e como aconteceu nas eleições para diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) e agora para a importante presidência do BID, onde o Brasil perdeu no primeiro turno para o candidato colombiano e não contou nem com os votos do Uruguai e do Paraguai.

Com a retomada das negociações na Alca, caso o governo Lula mantenha as atuais posições, o Brasil, mais uma vez, ficará isolado no contexto sul-americano. Levará tempo até que nossas relações com a América do Sul sejam recolocadas em seu leito natural, como ocorreu até 2002.

Liderança não se proclama, se exerce.