Título: É uma afronta
Autor: Mauro Chaves
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/08/2005, Espaço Aberto, p. A2

O que causa maior perplexidade e indignação não é o volume descomunal da bandalheira, não é a enxurrada de dinheiro sujo transportado em malas, ou sacado às escondidas de caixas de bancos e depositado em outras contas da mesma agência, ou enfiado em cuecas ¿ embora pela origem devesse associar-se mais ao conteúdo de fraldas usadas ¿, nem mesmo é a inacreditável quantidade de pessoas envolvidas na mais gigantesca roubalheira pública já praticada na História do País ¿ e talvez do Continente. Também não é a causa do perplexo e indignado sentimento nacional o fato de um partido que se autoproclamava o campeão da ética na política, o renovador de costumes, de mentalidades, do relacionamento governo-sociedade, ter sido, justamente, o comandante de uma vasta e inédita operação criminosa que em apenas 30 meses causou o apodrecimento moral de inúmeros setores, instâncias e instituições da administração pública federal ¿ direta e indireta.

O que causa maior perplexidade e indignação é a intolerável afronta à inteligência dos cidadãos brasileiros. Ser roubado é uma coisa. Ser considerado um definitivo imbecil é outra. É uma afronta tentar passar como empréstimo bancário o butim dos cofres públicos. É uma afronta inventar-se um publicitário que jamais entendeu coisa alguma de publicidade ¿ talvez seguindo o modelo de um presidente que jamais entendeu coisa alguma de governo ¿ e transformá-lo num empresário mecenas, generoso demiurgo das finanças partidárias, poderoso factótum do abastecimento monetário dos controladores da máquina de governo.

É uma afronta considerar-se um tesoureiro semi-analfabeto funcional, incapaz de articular qualquer raciocínio lógico, o engendrador de todo um vasto esquema de corrupção institucionalizada ¿ no âmbito do crime às vezes organizado, às vezes nem tanto. É uma afronta jogar para meros laranjas ¿ mesmo que estes tenham sabido compensar-se muito bem pelo sujo trabalho subalterno ¿ a responsabilidade decisória exclusiva pela operacionalidade administrativo-financeira de um partido político que sempre teve por maior característica a decisão colegiada, o assembleísmo, até como forma de conciliar suas díspares facções ideológicas.

É uma afronta tentar-se confundir o dinheiro público rapinado, fruto do superfaturamento de obras e serviços, das concorrências fraudulentas, das comissões e propinas, dos reajustes contratuais supermajorados, das sobras de aplicações privilegiadas em bancos sedes de quadrilha, ou de cambalachos com fundos de pensão, com doações ¿não contabilizadas¿ para campanhas eleitorais, originadas de empresas privadas.

Mas, da mesma forma, é uma afronta considerar o caixa 2 dos partidos políticos um simples crime ¿menor¿, pois este é um crime ¿maior¿, contra a lisura eleitoral da democracia representativa, mesmo que tenha sido posto em deliberado cotejo (para ser criminalmente minimizado) com o mensalão ¿ a hedionda compra de consciências parlamentares ¿ graças à esperteza estratégica de um ministro especialista, a quem, profissionalmente, o crime sempre compensou.

É uma afronta o político notoriamente mais influente de um partido, que o comandou durante sua maior expansão e articulou todo o sistema de alianças que o levou à conquista do poder, que no governo exerceu a função de primeiro-ministro de fato, participando de nomeações e estratégias desenvolvidas no âmbito de quase todos os ministérios ¿ político esse, por sinal, com uma fantástica habilidade de disfarce, que no passado lhe permitiu camuflar a identidade perante a própria família ¿, revelar-se, agora, perante seus colegas parlamentares e de frente para as câmeras de televisão, sem enrubescer e olhando ¿olho no olho¿ (aliás, o mais moderno marketing de persuasão parece desenvolver-se pela técnica da ¿mentira-olho-no-olho¿), como o mais alheado, ingênuo, ¿inocêncio¿, distante, ¿por fora¿ de todos os figurantes que vicejam no espaço público-político caboclo.

É uma afronta justificar-se a movimentação escusa de grande soma de dinheiro, mediante depósito do ¿mecenas¿, como necessidade de pagamento de honorários advocatícios, em razão de o partido ter tido um seu prefeito assassinado, em circunstâncias misteriosas, e por isso ter de contratar um caríssimo advogado. (E para quê? Para auxiliar na acusação de suspeitos e garantir a punição dos culpados? Nada disso? Seria, então, para ¿defender¿ o partido? Mas de quê? Defesa de ¿imagem¿? Desde quando isso é tarefa de causídicos?)

É uma afronta a facilidade com que se mente de cara limpa, sem o menor laivo de vergonha, como se verdade e mentira fossem apenas expressões bem ou mal articuladas, sem relação alguma com a realidade ¿ alienação, aliás, semelhante aos bramidos espumantes e patéticos choros ecoados dos palanques presidenciais. Negam-se depósitos bancários mesmo ante a exibição de comprovantes que os atestam. Negam-se reuniões mesmo que as respectivas audiências estejam comprovadas, por anotações em agendas. Atribui-se à autonomia de subordinados ¿ e à alienação própria ¿ a manipulação dos dinheiros mais comprometedores.

Um ex-governador e atual senador, presidente do principal partido de oposição, também flagrado no crime do caixa 2 ¿ com repasses do mesmo laranja-mecenas ¿, se permite a mesma defesa inverossímil, jogando para terceiros sua responsabilidade. É uma afronta que nenhum correligionário seu tente afastá-lo da presidência e expulsá-lo do partido, como devia, para impedi-lo de ser o melhor escudo de cinismo, caído do céu das Alterosas, para a bênção, cheia de orégano, dos mensalonados. Sim, é muita afronta às pessoas do Brasil.