Título: Abandono de emprego
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/08/2005, Notas e Informações, p. A3

Se o torneiro mecânico Luiz Inácio da Silva fizesse, como assalariado das Indústrias Villares, o que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva faz, como assalariado de todos os brasileiros, já teria sido demitido por abandono de emprego. Nas últimas três semanas, aponta a imprensa, talvez fosse mais fácil encontrá-lo em São José dos Campos, Recife, Duque de Caxias, São Bernardo do Campo, Bagé, Canoas, Osório, Maquiné, Garanhuns, Teresina, Floriano, Eliseu Martins e Canto do Buriti do que no seu local de trabalho, o Palácio do Planalto ¿ o ¿outro lado da rua¿ de que falou o deputado Roberto Jefferson à CPI do Mensalão, na quinta-feira, para indicar onde estaria ¿o útero, a matriz da corrupção¿.

É sabido que nesses 2 anos e 7 meses o que o presidente mais fez foi discursar e viajar, no Brasil e para o exterior, dedicando-se o mínimo possível às servidões da administração e das tratativas políticas indissociáveis da função presidencial ¿ repassadas ora ao primeiro-ministro José Dirceu, ora ao czar da economia Antonio Palocci, entre outros. Não obstante esse deplorável retrospecto, o padrão atual é de estarrecer. Desde que completou a reforma ministerial de mais longa gestação de que se tem memória, sob a radioatividade das denúncias de suborno sistemático de deputados, Lula desocupou-se de vez dos negócios do Estado.

Com um pormenor, porém. Embora tivesse como que pendurado na porta de seu gabinete um aviso com os dizeres ¿Fechado por motivo de viagem¿ ¿ para desfilar, no papel de vítima, a sua presumida inocência dos fatos que soterraram o seu partido e arruinaram a imagem do seu governo e, ao mesmo tempo, para intensificar a campanha pela reeleição ¿, o presidente se vale sem cessar dos meios materiais e operacionais apropriados ao cargo, as facilidades que só se justificam enquanto suporte da atividade de conduzir o País. Vale-se também, sem embaraços aparentes, do poder de pretextar motivos para os seus deslocamentos.

Tampouco parece causar-lhe desconfortos de consciência o fato de essas razões serem quase sempre pífias, como a inauguração de um novo setor de uma fábrica (em São José dos Campos) ou de um trecho de estrada recuperado há mais de um ano (em Eliseu Martins, Piauí).

O uso dos recursos oficiais para levar aos quatro cantos do território (foram 17 mil quilômetros de caravanas eleitorais do dia 19 de julho até hoje) o espetáculo do qual ele pode não ser o coreógrafo, mas é o único e exclusivo artista ¿ do contrário não faria sentido para o que se destina ¿, não deixa de ser um crime eleitoral. Mesmo diante das intermináveis revelações de imoralidades incomparavelmente mais chocantes que mancharam seu partido e seu governo, das quais, por sinal, não teria o mais remoto conhecimento.

Já a sua conduta nessas excursões eleitorais degrada a instituição presidencial. Não bastasse a inoportuna hora política para satisfazer a sua incontida atração pelos palanques, o que neles diz e faz ¿ para públicos que só conseguem vê-lo pelas lentes da afetividade e da identificação pessoal ¿ é de fazer corar as pedras do Planalto.

Um dia depois do ¿vão ter que me engolir de novo¿, prorrompeu em choro convulso e tropeçou feio na história ao se comparar ao Getúlio Vargas que teria criado a Petrobrás ¿contra os interesses da elite política brasileira¿.

Se menor fosse a sua aversão pela leitura, saberia que essa mesma elite, encarnada à época na UDN oposicionista, criou a Petrobrás como monopólio estatal ¿ o que não estava nos planos de Vargas.

O presidente está se afundando na sua própria desorientação diante da crise. Claramente, ficou à míngua de conselheiros autorizados a ajudá-lo a pôr ordem nas suas descontroladas emoções e pensamentos desarticulados. À falta de melhor, parece pertinente a sugestão de que o presidente convoque o Conselho da República ¿ o que só ocorreu duas vezes desde a sua criação, em 1988.

Dele fazem parte o vice-presidente, o ministro da Justiça, os titulares da Câmara e do Senado, os líderes da maioria e da minoria nas duas casas, e seis cidadãos escolhidos pelo Planalto e o Congresso. O colegiado pode se manifestar sobre ¿questões relevantes para a estabilidade das instituições democráticas¿.

Vem a calhar. Sendo incerto o desfecho das CPIs, inviável a idéia de abreviá-las para exaurir a crise e assustadora a incontinência verbal de Lula, essa ¿junta médica¿ poderá cuidar do pior efeito colateral dos escândalos até aqui ¿ a conduta carbonária do presidente da República.