Título: A baixeza do clero
Autor: DORA KRAMER
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/08/2005, Nacional, p. A6

Severino atrasa cassações numa ação entre colegas de, e sem, classe O presidente da Câmara, deputado Severino Cavalcanti, não perde uma única oportunidade de comprovar sua carência de estatura para ocupar o posto ao qual foi eleito por acidente de percurso político.

O desconhecimento regimental e a incapacidade de comandar o plenário - evidenciados nas sessões de votações - são miudezas diante da sem-cerimônia com que ora pede, ora exige cargos federais para entregar a apaniguados.

Nada se assemelha, entretanto, à recente iniciativa do presidente da Câmara de contribuir para o aprofundamento da desmoralização do Poder Legislativo, ao decidir segurar os pedidos de cassação de deputados até o fim "das CPIs".

Note-se, de todas as três comissões parlamentares de inquérito em curso, cujos prazos vão, na mais célere das hipóteses, até o fim do ano.

Ou seja, a prevalecer a opinião de Severino, os deputados da lista de Marcos Valério podem ficar tranqüilos, não precisam nem recorrer ao expediente da renúncia porque seus mandatos estão garantidos pela ausência de processo.

Enquanto isso, vai se ganhando tempo, contando com a possibilidade de a amplitude e a repetição das denúncias tornarem o noticiário cansativo, confuso a ponto de provocar o desinteresse da opinião pública e, pouco a pouco, tudo cair no esquecimento.

Caso o escândalo não arrefeça, a rede de proteção pode servir também para os envolvidos escolherem o melhor momento de renunciar, a fim de não perder os direitos políticos, já que essa prerrogativa cessa quando o processo é iniciado.

De um modo e de outro, a conduta de Severino pode não ser adequada à demanda da sociedade, mas é condizente com o dever de lealdade do presidente da Câmara com seus correligionários na eleição de fevereiro e companheiros de baixo clero.

Três deles, José Janene, Pedro Corrêa e Pedro Henry, pertencem ao seu partido (PP) e não apenas comandaram a campanha como se tornaram seus braços mais próximos no comando da Câmara.

Corrêa foi, por ação direta de Severino, meses atrás favorecido num processo de quebra de decoro por envolvimento com a máfia dos combustíveis.

De posse dessa credencial, na semana passada o presidente da Câmara fez duas outras tentativas: primeiro, propôs simplesmente a retirada de cena do Conselho de Ética a pretexto de dar "celeridade" aos trabalhos, transferindo tudo para a CPI dos Correios.

Depois, comandou um esboço de acerto pelo qual os partidos retirariam as representações de uns contra os outros a fim de "evitar uma guerra" de extermínio entre os deputados, conforme explicou justamente Pedro Corrêa, o porta-voz de Severino nesse caso.

Uma beleza de proposta: para não punir muitos, não se pune ninguém. Raciocínio típico da mentalidade corporativa preponderante nessa camada.

Diga-se, no entanto, em defesa de Severino, que ele não é causa da ascensão dessa instância nunca antes elevada ao primeiro plano das ações do Parlamento.

É, antes, conseqüência, ou melhor, a culminância, de um processo iniciado pelo antecessor, João Paulo Cunha, que até a retirada do PT da Mesa Diretora de sua gestão negociou para dar lugar ao baixo clero.

Com esse grupo fez toda sorte de acertos para engrossar seu projeto, fracassado, de viabilizar a própria reeleição. João Paulo deixou da lado as cabeças pensantes, os críticos e os independentes, abrindo espaço aos subservientes prestadores de serviços.

Deu gás a quem não tinha voz, prestigiou gente que de altos postos na Câmara passou a integrar as listas de cassações, semeou o terreno do qual viria a brotar Severino, que agora retribui lançando botes salva-vidas aos náufragos no mar (de lama).

Instinto profissional

O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, faz dois reparos a referências feitas a ele ontem. Primeiro, discorda da afirmação de que vem atuando cada vez mais como advogado de defesa do governo do que como ministro da Justiça. "Não estou advogando."

Não por falta de solicitação, diz Thomaz Bastos. "Muitas vezes tenho de conter meu instinto profissional e evitar dar orientações jurídicas, até em resposta a consultas que me fazem constantemente."

Thomaz Bastos dá conselhos, mas, assegura, só de natureza política e estritamente ligados a interesses de governo.

Outro reparo diz respeito ao pronunciamento em rede nacional que faria em maio sobre as ações da Policia Federal. De acordo com o deputado Roberto Jefferson, a fala do ministro - cancelada - marcaria o início da ofensiva de desmoralização do PTB por parte do governo, com acusações sobre o partido.

Na versão do ministro, o pronunciamento foi suspenso porque foi ultrapassado pela entrevista de Jefferson, na véspera, denunciando o mensalão. "Como eu não falava no assunto, pareceria que estava querendo desconversar."

E por que não gravou outro? "Porque o presidente falou no assunto depois."

E desconversou.