Título: Corrupção na política pós-moderna
Autor: Roberto Macedo
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/08/2005, Espaço Aberto, p. A2

Pós-moderno é um termo da filosofia e do mundo das artes, de definição controvertida, mas útil para compreender e tirar lições do escândalo que ora ocupa as atenções nacionais. Numa de suas versões o termo descreve situações contemporâneas cujo traço comum é a ¿remoção de uma realidade cuja ausência nem mesmo é sentida¿(*), com a compreensão do mundo ocorrendo a partir de imagens e mitos criados ou influenciados pelos meios de comunicação e pela publicidade que trafega por eles. Lula é um desses mitos, retirado de sua história, à qual não faltaram propostas de ruptura de vários aspectos do ¿sistema¿, como a dívida pública e a política econômica em geral. Para fins eleitorais foi transformado pelo publicitário Duda Mendonça noutra figura, a qual atraiu eleitores com a esperança de melhores dias. Sua realidade, antes coberta de arestas e intragável para muitos, foi burilada numa imagem para ¿descer redonda¿, tal como alardeia uma cerveja em sua propaganda. Emblemático desse processo, Lula não foi, contudo, o primeiro nem o único a utilizá-lo.

Ao contrário, esse caminho se tornou trivial na política brasileira, na qual marqueteiros e publicitários tipificam sua fase pós-moderna que ultravaloriza as imagens. Isso freqüentemente a distorcer a realidade, num movimento exacerbado pelo enorme desenvolvimento dos meios de comunicação e de seu papel nas campanhas eleitorais.

Com suas pesquisas os marqueteiros buscam entender o que o eleitor quer para, com a ajuda da publicidade, lhe oferecer o produto adequado, muitas vezes ajustando sem escrúpulos o disponível, num terreno em que a propaganda enganosa ainda não sofre as mesmas restrições que se aplicam à dos bens e serviços em geral.

Com levantamentos quantitativos e qualitativos, é também observado o desempenho dos candidatos concorrentes, promovendo-se os ajustes necessários na ¿campanha de venda¿. No governo, ainda que impedida legalmente a referência nominal ao poderoso que encomenda as campanhas publicitárias, mas sempre para enaltecer seu mandato, muitas ações de políticas públicas são precedidas e prosseguidas por essas campanhas.

Todo esse processo trouxe um grande aumento dos gastos de publicidade nas campanhas eleitorais e nas do poder a que levam. Nessas condições, é sintomático que o escândalo atual, gigantesco em finanças e personagens, gire em torno das empresas de publicidade que têm como sócio o sr. Marcos Valério.

Na terça-feira o deputado federal Roberto Jefferson (PTB-RJ) foi o principal orador de evento realizado pela Associação Comercial de São Paulo para discutir pontos que caberiam numa reforma política. Além de esse deputado ser a estrela do momento, inclusive com características pós-modernas a reforçar sua imagem, o convite que recebeu se deveu a seus notórios conhecimentos do que precisa ser reformado. É do ramo, como dizia um de seus maiores expoentes, Adhemar de Barros.

Ora, na ocasião Jefferson afirmou que as empreiteiras de obras, outrora personagens típicas de casos de corrupção, agora perderam espaço para agências de publicidade. Ao contrário dos serviços destas, as empreiteiras trabalham com produtos de avaliação bem mais fácil em suas características, e o deputado disse que hoje elas operam com margens pequenas em face do aperfeiçoamento dos controles de órgãos que cuidam do assunto.

Entendo que nesse caso das empreiteiras os riscos hoje podem ser menores, mas continuam existindo e estão longe de desprezíveis. E há agora outros tipos de empreiteiras que surgem em denúncias, como as de serviços de coleta de lixo (cujo excesso é outro fenômeno pós-moderno), num trabalho que proliferou na esteira da terceirização dessa atividade.

Entendo também que uma das razões que explicam a menor presença de empreiteiras tradicionais denunciadas é que os investimentos públicos em obras caíram muito com as privatizações e com as dificuldades financeiras do governo, dada a crescente parcela orçamentária que corresponde aos gastos de custeio, inclusive os de publicidade, mais os juros da dívida.

Conheci Juscelino Kubitschek (JK) em comícios, hoje em sua versão pós-moderna e caríssima, a dos ¿showmícios¿ dos pacotes publicitários. Um dos símbolos do modernismo brasileiro, JK adotou como lema de governo o que chamava de ¿binômio energia e transporte¿, um campo fértil para empreiteiros de obras.

Brasília também o foi, mas, cheia de outros significados e imagens além da obra em si, já marcou uma transição para o pós-modernismo. Este, contudo, na época ainda não exacerbado pelo enorme desenvolvimento dos meios de comunicação que veio depois, nem pelos marqueteiros e agências de publicidade que se tornaram onipresentes nas campanhas e nos governos.

Dado esse quadro, o pós-modernismo na política, além de enganar a gosto do eleitor, abriu um novo espaço de corrupção que precisa ser contido.

Em particular, o espaço de propaganda gratuita na televisão é preenchido por caríssimas peças publicitárias, muitas das quais só sustentáveis com caixas 2 e/ou promessas de contratos em caso de vitória. Mesmo sem essas promessas, a lisura na contratação corre riscos em face da dificuldade de avaliar a natureza dos serviços e seus custos.

Para estancar essa ameaça e em face da dificuldade de coibir a propaganda política enganosa, não vejo outra saída senão limitar a que se faz na televisão a informações curriculares e programas de debates, sem as ilusórias encenações externas, bem como impor limites drásticos à publicidade governamental.

Isso para que o mundo de imagens fabricadas que hoje marca a ¿sociedade do espetáculo¿ (outro traço do pós-modernismo) deixe de impor seu engano à (in)consciência dos cidadãos.