Título: Maus e bons sinais
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Fonte: O Estado de São Paulo, 11/08/2005, Notas & Informações, p. A3

O segundo depoimento do empresário Marcos Valério no Congresso, dessa vez na CPI do Mensalão, deixou um gosto amargo na boca de muitos. Pelo deslavado cinismo do depoente, livre para mentir e calar graças ao que pode ser interpretado como um uso perverso do sacrossanto instituto do habeas-corpus. E, sobretudo, pela complacência da grande maioria dos seus inquiridores diante de mais essa farsa. Valério permitiu-se até escarnecer da comissão, ao relatar a sua ida a Lisboa em companhia do então tesoureiro do PT Emerson Palmieri para tratar com o presidente da Portugal Telecom de negócios postos sob suspeição pelo deputado Roberto Jefferson.

Como um turista de volta do exterior, em conversa com amigos, descreveu em detalhe a sua jornada lisboeta, citando o hotel onde se hospedou, falando dos passeios que deu, da bacalhoada que comeu e da casa de fados que visitou ¿ sem que o autor da pergunta protestasse contra a narrativa que desmoralizava a comissão.

De tudo restou mais uma lista: a das 75 pessoas, entre elas dois deputados federais, cinco estaduais, três prefeitos e uma ex-senadora, pertencentes a meia dúzia de partidos, a começar do PSDB e quase todos de Minas, a quem pagou R$ 1,8 milhão na campanha de 1998 ¿ aproximadamente 1/30 do que diz ter emprestado ao então tesoureiro petista Delúbio Soares. (Notícias de uma segunda lista tumultuaram ontem a reunião conjunta das CPIs dos Correios e do Mensalão.)

O despudor de Valério e a flacidez dos seus investigadores deram mais um argumento aos que acreditam que está em curso um grande conchavo, unindo lideranças governistas e oposicionistas, para a assadura da tradicional pizza com que terminariam, ao menos na esfera parlamentar, os escândalos conexos da corrupção no governo e da compra de deputados.

Apontou-se como indício disso o acordo a que petistas, tucanos e pefelistas chegaram na semana passada, na CPI dos Correios, para limitar o levantamento de dados sobre os investimentos de 11 dos maiores fundos brasileiros de pensão ¿ uma pesquisa abrangente poderia ligar os pontos entre setores do governo, o PT, o onipresente Marcos Valério e os bancos dos quais saiu a dinheirama para políticos.

A multiplicidade de comissões de inquérito (Correios, Mensalão e Bingos) e de instâncias de decisão sobre eventuais processos e punições (as próprias CPIs, a Mesa da Câmara, a Corregedoria e o Conselho de Ética da casa, a Procuradoria-Geral da República e o STF), enfim, os complexos trâmites exigidos, tudo isso poderia servir de instrumento aos desejosos de circunscrever a alguns bodes expiatórios a culpa pelo assombroso lamaçal cuja profundidade ainda está por ser medida.

O abafa seria o produto de dois movimentos que se confundem: de um lado, o daqueles que, em autodefesa, só aceitam cortar superficialmente na própria carne; de outro, o daqueles que acreditam, talvez com razão, que as cassações não podem chegar a um número tal que poria abaixo a legitimidade do Congresso.

Mas a pizza não é um prato já pronto. Líderes podem cozinhar acordos de conveniência ¿ e serem desobedecidos pelos liderados que têm mais a ganhar com as câmaras de eco da mídia do que com os murmúrios nos gabinetes.

Pressões funcionam: de um dia para o outro, o presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, desistiu de adiar os procedimentos que decerto privarão de seus mandatos o deputado José Dirceu e outros mais. Por sua vez, o presidente Lula finalmente reconheceu, em carta à CNBB, a ¿gravidade¿ da crise ¿ embora repetindo no texto todos os temas que vem usando em sua campanha eleitoral. Falando nisso, ele ainda não segue por inteiro a norma eclesiástica ora et labora. Voltou ontem a viajar, mas poderá fazer, ainda esta semana, um mea-culpa público.

Por último, correndo contra o relógio, parlamentares articulam mudanças nas regras eleitorais já para 2006. A idéia é ir à raiz da praga do caixa 2 na política ¿ o exorbitante custo das campanhas ¿, abreviando a sua duração, proibindo showmícios e cenas externas no horário eleitoral. É o que o governador Mario Covas pregava, no deserto, há mais de 10 anos.