Título: Escândalo na ONU
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Fonte: O Estado de São Paulo, 11/08/2005, Notas & Informações, p. A3

Quando surgiram as primeiras denúncias de que um esquema corrupto se instalara no Programa Petróleo por Alimentos, administrado pela ONU, o diretor-executivo do programa, Benon Sevan, tentou dissipar as suspeitas, alegando que cerca de cem auditorias internas e externas haviam conferido as contas, sem encontrar irregularidades. Esta semana, Sevan foi acusado por uma comissão independente nomeada pela ONU e chefiada pelo ex-presidente do Federal Reserve Paul Volcker de ter recebido subornos no valor de US$ 147 mil. A comissão concluiu que o dinheiro foi recebido em pagamento de facilidades criadas pelo funcionário nas transações com petróleo iraquiano, e não de uma tia, como inicialmente sustentara Benon Sevan. O funcionário nega ter cometido qualquer crime ou irregularidade. Os detalhes do caso serão conhecidos quando o relatório de Volcker for concluído, em setembro.

A comissão Volcker também denunciou o funcionário Alexander Yakovlev, responsável por compras na ONU entre 1993 e 2005, que foi imediatamente preso e confessou ter praticado os crimes de conspiração, fraude e lavagem de dinheiro. Contra ele existem evidências de que recebeu mais de US$ 950 mil em propinas pagas por empresas interessadas em firmar contratos com a ONU. Nenhum desses contratos tinha relação com o programa de assistência ao Iraque.

O secretário-geral da ONU, Kofi Annan, suspendeu a imunidade diplomática dos dois funcionários, que agora respondem a processos nos foros de Nova York. Apesar de ter nomeado a comissão independente e colaborado com as investigações, Annan não está acima de suspeitas. A comissão Volcker está investigando se ele teve participação na obtenção de um lucrativo contrato no Programa Petróleo por Alimentos por uma empresa que empregou seu filho, Kojo Annan.

O programa, que funcionou de 1996 até 2003, quando o Iraque foi invadido, movimentou cerca de US$ 67 bilhões, que deveriam ser usados na compra de medicamentos e alimentos ¿ escassos por causa do bloqueio econômico imposto após a Guerra do Golfo ¿ para a população iraquiana e para garantir o pagamento de reparações de guerra. Estima-se, no entanto, que cerca de US$ 21 bilhões foram desviados por Saddam Hussein e que pouco mais de US$ 2 bilhões foram para os bolsos de funcionários públicos e de empresas privadas que facilitaram ou encobriram a fraude.

Os procedimentos administrativos da ONU ajudaram a criar as condições para que o Programa Petróleo por Alimentos se tornasse um escândalo de corrupção.

Por imposição da burocracia, eram mantidos em segredo os nomes das pessoas e empresas participantes do programa, assim como os termos dos contratos, que previam o pagamento de comissões sobre a venda do petróleo iraquiano. Esse clima de segredo, observou a jornalista Claudia Rossett, que fez as primeiras denúncias de irregularidades, ¿era um convite à propina, ao favor político e ao contrabando praticados sob o disfarce de operações de ajuda¿.

Também é caldo de cultura da corrupção o sistema de escolha dos funcionários da ONU, baseado no nepotismo e no favorecimento político, e das empresas contratadas pela organização. A que subornou Sevan, por exemplo, é presidida por um primo do ex-secretário-geral Boutros-Ghali. O filho do atual secretário-geral, como já dissemos, é funcionário de outra empresa envolvida no escândalo.

Há 15 anos, uma comissão chefiada pelos ex-vice-secretários-gerais Erskine Childer e Brian Urquhart fez recomendações enfáticas para acabar com o preenchimento de vagas mediante o que chamavam de ¿arranjos secretos¿ e ¿favorecimentos¿. Também recomendou a mudança do sistema de prestações de contas da ONU, a seu ver pouco transparente. Esses problemas estruturais e as soluções propostas não receberam maior atenção do Secretariado e da Assembléia Geral.

No projeto de reforma da ONU, feito pela chamada ¿Comissão de Sábios¿ e endossado este ano pelo secretário-geral Kofi Annan, as mudanças no sistema de recrutamento e de prestação de contas e contabilidade voltaram a ser propostas. O escândalo envolvendo dois altos funcionários da organização deve ser um incentivo para que essas mudanças sejam aceitas.