Título: A intrepidez da ignorância
Autor: Washington Novaes
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/08/2005, Espaço Aberto, p. A2

No final deste mês, o Ministério do Meio Ambiente estará promovendo em Salvador uma reunião sobre o plano de ação para implantar a Política Nacional de Biodiversidade. Em abril do ano que vem, Curitiba vai sediar uma conferência mundial sobre esse tema e sobre biossegurança. Talvez os dois eventos ajudem a colocar a questão da biodiversidade onde ela precisa estar ¿ no centro da atenção do País ¿, dada a sua relevância para o futuro. Ainda em maio último, o Fórum das Nações Unidas sobre Florestas destacou um dos ângulos fundamentais para o Brasil: o desmatamento e a degradação florestal no mundo ¿prosseguem em ritmo alarmante; ao longo da década de 90, a cada ano se perderam em média 146 mil quilômetros quadrados de florestas tropicais¿. De alguma forma, disse o fórum, 1 bilhão de pessoas dependem das florestas, 300 milhões das quais diretamente (subsistência e renda). O Brasil, hoje, responde por um sexto do desmatamento, pelo menos.

Na semana passada, no Fórum Mundial das Crianças sobre o Meio Ambiente, no Japão, a biodiversidade foi um dos temas para os quais as 600 crianças reunidas chamaram a ¿atenção dos líderes mundiais¿. Os brasileiros deveriam estar atentos. Como ressaltou há poucas semanas o ex-diretor do Banco Mundial no Brasil Vinod Thomas, ¿o caso dos recursos naturais no Brasil é emblemático¿ (de falta de políticas). ¿São recursos que ninguém tem e cujos valores vão aumentar a cada ano¿, disse ele (Folha de S.Paulo, 10/7/2005). Mas que podem perder-se rapidamente.

A recém-lançada revista Megadiversidade, da Conservação Internacional, traz um levantamento de dezenas de especialistas sobre esse tema. Ela relaciona o impressionante acervo de biodiversidade já conhecido no País, que lhe confere uma posição excepcional, com 9,5% das espécies descritas pela ciência no mundo, entre 170 mil e 210 mil espécies no território brasileiro. A estimativa é que o número total aqui seja de 1,8 milhão de espécies.

São 56 mil espécies de plantas (19% da flora mundial), 765 espécies de anfíbios, 650 de répteis, cerca de 1.700 aves, 530 mamíferos e uma das mais ricas diversidades marinhas, com boa parte das espécies ameaçadas, inclusive pela pesca excessiva. Só na Amazônia são 40 mil plantas, 427 mamíferos, 1.294 aves, 378 répteis, 427 anfíbios, 3 mil peixes.

Embora tenhamos 900 áreas definidas como prioritárias para conservação, as áreas protegidas somam hoje apenas 370 mil quilômetros quadrados em 478 unidades de conservação e proteção integral, parte delas com muitos problemas. É pouco para tanta riqueza, que será decisiva nas próximas décadas, num mundo que consome mais do que a biosfera pode repor e onde recursos e serviços naturais serão cada vez mais importantes e mais escassos.

E o problema não está só em terra. Recente relatório de um grupo internacional de cientistas reunidos pela academia de ciências da Grã-Bretanha alertou: os oceanos estão ficando mais ácidos, porque absorvem mais dióxido de carbono da atmosfera; e isso pode ser ¿catastrófico¿ para a biodiversidade marinha, afetar as cadeias alimentares.

O relatório coincide com a divulgação de outro estudo, que mostrou a extraordinária riqueza da fauna que vive sob os gelos do Ártico. Um terceiro, da Universidade de Lund, na Suécia, traz como um de seus destaques um tipo de medusa que tem 24 olhos e quatro cérebros. Outro estudo, divulgado pela revista New Scientist, destaca um tipo de abrunheiro cujo estame, para disseminar o pólen, gera um impulso 800 vezes mais forte que o de um foguete espacial no momento de ser lançado, equivalente a 24 mil metros por segundo.

Diz a mesma revista que o derretimento dos gelos polares está levando à disseminação de uma quantidade inimaginável de micróbios, fungos, bactérias que ali permaneciam congelados ¿ mas vivos . Essa fauna pode estar entre 100 quatrilhões e 10 sextilhões de seres, congelados há pelo menos 400 mil anos.

É possível até que entre eles se encontrem vírus e bactérias condutores de doenças já desaparecidas, como os da gripe espanhola ou da varíola, ou outros ainda, para os quais o organismo humano não tem defesa.

O renomado cientista Craig Venter, que seqüenciou pela primeira vez um genoma de espécie viva e integrou uma das duas equipes que seqüenciaram o genoma humano, está comandando uma circunavegação dos oceanos, que tenta repetir o caminho de Charles Darwin, mas para descobrir o mundo invisível das bactérias, dos vírus e micróbios. Só no Mar de Sargaços, tido como ¿morto¿, foram coletadas 47 mil espécies.

Tudo isso levou Gail Vines a escrever, na revista mencionada, que, ¿cada vez que uma espécie se perde, uma solução única para a equação da vida desaparece, e com ela uma herança insubstituível, um legado do passado (...)

Já sobreexploramos as espécies contemporâneas, destruímos seus hábitats e agora estamos perturbando o clima global (...)

Há limites para o que o ser humano pode retirar da natureza¿. Nesse contexto, só pode ser bem-vinda a notícia de que, em função de liminar concedida pela Justiça, o Ministério do Meio Ambiente promoverá novas audiências públicas para discutir a questão de critérios para ocupação de áreas de preservação permanente. O texto aprovado pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente em primeira discussão suscitou forte reação da sociedade e precisa mesmo ser rediscutido.

A informação nessa área é decisiva. Para que a sociedade seja capaz de exigir políticas adequadas. Não podemos continuar convivendo com a ¿intrepidez da ignorância¿, como gostava de dizer o saudoso Delmiro Gonçalves, que atuou como crítico de teatro neste jornal nas décadas de 1950 e 1960.