Título: 'Judeus e árabes são iguais ante Beethoven'
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Fonte: O Estado de São Paulo, 05/08/2005, Internacional, p. A16

"Enquanto os dois lados não começarem a pensar diferente, não haverá solução possível." Assim o maestro argentino-israelense Daniel Barenboim definiu ontem o estágio atual do conflito entre israelenses e palestinos. "Nós, judeus, precisamos entender o raciocínio palestino. Se esta terra já pertenceu a judeus, muçulmanos e cristãos, por que agora ela é só nossa? Da mesma forma, a nossa história como eterna minoria, em especial após o Holocausto, nos faz pensar que só podemos existir sozinhos. Mas por que os palestinos precisariam pagar pelo nosso sofrimento?" Barenboim está em São Paulo, onde rege sábado o Divã Ocidental-Oriental, orquestra criada nos anos 90 por ele e o pensador palestino Edward Said.

Composta por jovens de Israel, Síria, Egito, Jordânia e Líbano, seu objetivo é mostrar que é possível estabelecer o diálogo entre o mundo árabe e Israel por meio da música. "Perante uma sinfonia de Beethoven, são todos iguais. Em uma orquestra, tudo se resume a ouvir o músico ao seu lado, conhecê-lo, compreender seu trabalho e respeitá-lo."

Barenboim já era um maestro consagrado quando, em 2001, provocou em Israel uma polêmica que repercutiu em todo o mundo. À frente de uma orquestra alemã, regeu "Tristão e Isolda", de Richard Wagner, um notório anti-semita. Desde a fundação do estado israelense, havia uma censura informal à obra de Wagner. Por isso, quando a platéia foi surpreendida com a música, houve uma saraivada de protestos.

Barenboim afirma categoricamente que sua orquestra formada por muçulmanos e judeus não é um projeto político. Em sua concepção, trabalhar com a música é ir além. Beethoven não é um mestre do contraponto. Suas sinfonias tratam de algo mais amplo, da condição humana. E mostram que a coexistência é possível.

Mas Barenboim, que hoje é diretor da Sinfônica de Chicago e da Ópera de Berlim, não se furta de emitir opiniões sobre o estágio atual do conflito. O ponto fundamental é a insistência pela necessidade do diálogo, até por motivos práticos. "Não há solução militar possível"

Isto definido, ele acredita ser um passo importante a retirada de colonos judeus de Gaza, prevista para o dia 17 de agosto. "É bom, pois mostra que ninguém tem direito de se impor em territórios que não são seus. E os judeus deveriam ser os primeiros a entender isso." Mas ele pede mais. "A construção do muro, iniciada por Israel, me ofende. Até porque não segue a fronteira israelense. Por que segregar os israelenses?"

Barenboim também pede por uma intervenção maior da Europa, cuja política em relação ao conflito seria, até agora, "modesta, para dizer o mínimo". Antes, porém, ele faz questão de ressaltar que não acredita no que chama de "modo americano" de intervenção. "Não aceito a presença americana no Iraque e não concordo com a tentativa de exportar para o Oriente Médio o que lhes parece ser o modo ideal de democracia e de vida." Para ele, a educação é a grande saída. E aí entraria a Europa. "Se a Europa não oferecer sua cultura para o Oriente Médio, o Oriente Médio continuará a levar a violência para a Europa.Cerca de 85% da população árabe tem menos de 30 anos. Quando vamos investir neles?"

E como todo este panorama se transforma em música? Ou melhor, como a música pode oferecer instrumentos para se lidar com conflito tão complexo? O surgimento do Divã Ocidental-Oriental serve de exemplo. O projeto teve início na década de 90 em Weimar, na Alemanha, quando músicos árabes, israelenses e alemães formaram o protótipo do que seria a orquestra. Os primeiros dias foram dedicados a conversas entre maestro, músicos e Said. Conversas tensas: Barenboim explica que, para muitos judeus, tocar ao lado de palestinos era o mesmo que tocar ao lado de amigos, parentes, vizinhos de terroristas; e, para os palestinos, conviver harmoniosamente com músicos judeus era como aceitar a situação geopolítica atual. "Então Said teve a idéia de nos levar, todos, a um campo de concentração. Ali, os palestinos compreenderam o sofrimento do povo judeu; e os judeus entenderam que podem compartilhar seus dramas com o 'inimigo', podem conversar com eles. É na compreensão do sofrimento dos dois lados que está o início do diálogo."