Título: No final, o choro dos espirituais
Autor: Francisco Foot Hardman
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/08/2005, Aliás, p. J3

O choro da esquerda petista fezme lembrar de uma pequena fábula sobre os frades espirituais do século 13, espécie de esquerda franciscana seguidora ortodoxa das regras de pobreza e ascetismo estabelecidas por Francisco de Assis. E como as fábulas, assim como os mitos, conversam entre si, a história dos espirituais franciscanos evoca uma sombria maldição formulada pelo pensador social Robert Michels, em 1915. Como veremos, as fábulas possuem seu próprio tempo e os sete séculos que as separam estão longe de afastá-las. O frei franciscano Elias de Cortona comportava-se de modo um tanto heterodoxo. Em capítulo realizado no ano de 1232, foi eleito ministro-geral da Ordem, tendo provocado no cronista medieval João de Giano ácidos comentários a respeito de seus hábitos pessoais, sobretudo no que se referia à questão da pobreza, da simplicidade e da humildade. Nachman Falbel, em seu belo livro Os Espirituais Franciscanos, menciona a utilização, por parte do cronista, do significativo termo latino carnalitatem, para designar o comportamento do novo dirigente.

O cronista Salimebene de Adam, ligado aos frades espirituais, acrescenta que Elias vivia splendide, delitiose et pompatice. O escândalo dos cronistas provinha da disparidade entre as regras franciscanas originais e a adesão preferencial ao compreensivelmente atraente mundo da carne. Com efeito, Francisco de Assis, no distante século 13, havia iniciado sua pregação a partir do que ele mesmo definiu como um casamento com a domina paupertas, a Senhora Pobreza. Pouco tempo depois de sua morte, a Ordem abriga como seu dirigente um sujeito que em nada se distingue da pompa deliciosa usufruída por outros segmentos da Igreja. Não é difícil imaginar o frade Elias a dizer e a justificar suas inclinações: são os novos tempos, todos fazem o mesmo...

Frade Elias tinha lá suas razões. A Ordem Franciscana, já em suas primeiras décadas, conheceu impressionante crescimento tanto em número de adeptos quanto no que dizia respeito à sua dispersão espacial. Novas escalas, novos desafios em termos de organização. A tendência à sedentarização, à burocratização e ao estabelecimento de hierarquias trouxe consigo o abrandamento das cláusulas pétreas e originais do igualitarismo e da pobreza radical.

Muitos séculos mais tarde, processo semelhante foi descoberto e analisado por Robert Michels, em sua obra clássica Partidos Políticos: um Estudo Sociológico das Tendências Oligárquicas da Democracia Contemporânea. Michels desvendou um paradoxo inerente à dinâmica da política democrática, qual seja o da oligarquização dos partidos políticos e das grandes organizações sociais. Para sustentar seu argumento, usa como evidência a história do movimento socialista, tanto em sua vertente partidária como na sindical. Muitos percebem nesse empreendimento um indisfarçável ânimo conservador e antisocialista. Mas, se Michels tivesse observado os partidos conservadores para neles detectar tendências oligárquicas, o resultado de seu trabalho seria puramente tautológico. O que o torna pleno de interesse é a descoberta de um princípio oligárquico no interior de um movimento doutrinariamente comprometido com valores igualitários e democráticos.

A fábula de Michels fala-nos do processo de transformação interna sofrido por organizações, mesmo igualitárias e democráticas, que as faz transitar de um estágio no qual o espírito original de solidariedade e de ausência de segredo dá lugar a hierarquias, controle da informação e crescimento patrimonial. Nesse trânsito os propósitos doutrinários do partido cedem espaço a considerações pragmáticas, voltadas para a preservação e crescimento da organização. Há um nexo que conecta a observação dos espirituais franciscanos às descobertas michelianas. Que tendências oligárquicas e opções pela carne caracterizem organizações de oligarcas convictos e de glutões, nada a estranhar. O drama se manifesta quando tais mecanismos aparecem em movimentos e partidos cujos fundamentos doutrinários são claramente democráticos e igualitaristas. Em outros termos, tais organizações não podem interpretar a sua degeneração como parte de uma tendência geral, já que partem do princípio de que não reconhecem e não pertencem a tal tendência, pois vieram ao mundo para destruí-la. Uma nota de justiça é devida aos franciscanos medievais e aos partidos socialistas amaldiçoados por Michels. A despeito da erosão de suas premissas originárias, deixaram marcas fundas e positivas na civilização ocidental. O legado dos franciscanos Guilherme de Ockham e Marcílio de Pádua para o ocidente moderno - laicização do pensamento e uma concepção de governo fundada na potestas humana - e o dos partidos socialistas para a criação de políticas de bem-estar social no século 20 são mais significativos do que os episódios de oligarquização.

O choro da esquerda petista revela mais do que tardia decepção. Indica perplexidade e desorientação diante de um processo de degeneração em parte determinado pelo próprio crescimento da organização partidária, que, por outro lado, resulta de decisões e escolhas políticas.

De modo mais preciso, falo de um conjunto de opções táticas, justificadas pela crença de que o crescimento do partido e as vitórias eleitorais são auto-explicativos. São formas absolutas de virtude que autorizam a mais completa frouxidão nos hábitos e costumes políticos.

Até a véspera da crise, o legado do Partido dos Trabalhadores para a história brasileira estava associado à própria democratização do País. Auto-organização popular, disseminação de valores igualitários, crítica cerrada aos padrões comportamentais das elites políticas, esses foram os temas que marcaram a presença do partido na vida brasileira.

Com a crise, fica claro que o PT se tornou um pária da política nacional menos pelo que acrescentou aos hábitos e costumes políticos do País e mais pelo que deixou de transformar. O choro da esquerda petista foi provocado, penso, pelo reconhecimento da normalidade de seu partido, finalmente convertido a um mundo onde 'todos fazem assim'.

Desde os idos da década de 80 a política brasileira vem sendo aprisionada pelos jogos de atração e repulsa entre o Executivo e o Congresso. Os atores fundamentais dessa singela relação, do lado do Legislativo, são partidos cuja existência é exclusivamente congressual.

Na verdade, são protagonistas de uma cultura de indiferença para com o mundo extraparlamentar, com ele estabelecendo conexões estritamente eleitorais, fundadas na captação de sufrágios. A vitória do PT em 2002 fez com que o partido se tornasse sistêmico - o dr. Marx o denominaria um 'partido da ordem' - em pelo menos duas dimensões: adesão ao credo de mercado e à superstição de que a economia possui uma natureza e adoção da moralidade política corrente. Seu legado ao País depende, hoje, do ânimo e da coragem para a auto-reforma. Um movimento que provavelmente o conduzirá na direção da esquerda e o afastará do governo. O tempo do partido deve exceder o tempo do governo.