Título: Um olhar sobre a China
Autor: Maria Tereza Leme Fleury
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/08/2005, Espaço Aberto, p. A2

No conturbado ambiente político atual, a reforma universitária proposta pelo ex-ministro Tarso Genro, a ser levada ao Congresso pelo ministro Fernando Haddad, continua ainda a suscitar controvérsias (embora se reconheça que a terceira versão apresenta avanços). Um dos pontos importantes diz respeito ao modelo de universidades no Brasil, públicas versus privadas, seu papel no projeto de desenvolvimento do País, seu modelo de gestão e financiamento. A importância fundamental da universidade pública, não só em termos do acesso mais democrático ao ensino superior, mas principalmente o seu papel na geração de conhecimento e formação de quadros de pesquisadores, docentes e profissionais, é inquestionável. O que, a meu ver , é questionável é o modelo de financiamento e de gestão da universidade pública que está em pauta.

Abrindo o zoom de nossas discussões, faz bem olhar a realidade de outros países, não só os que nos estão próximos, mas também um olhar sobre os países asiáticos, especialmente a China, que tanto nos preocupa do ponto de vista econômico.

Participei, com um grupo de professores, estudantes e executivos ligados aos cursos de MBA da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP e da Fundação Instituto de Administração (FIA), de uma viagem à China; objetivos vários nos uniram nesse projeto: conhecer a economia chinesa, os modelos de gestão de suas empresas e a bemsucedida experiência das empresas brasileiras (Embraer, Embraco, CVRD) em território chinês e realizar convênios com universidades. No retorno, encontrei acesa na USP a antiga polêmica sobre os cursos pagos de pós-graduação e especialização, as ações da Adusp contra as fundações e a atual medida do Ministério Público Estadual contra os cursos pagos.

Na China, desde a década de 60 todas as universidades foram tornadas públicas. Nos anos 90, entretanto, em função da necessidade de formação acelerada de jovens para fazer frente ao projeto de desenvolvimento econômico do país, as universidades privadas foram autorizadas. Segundo o artigo publicado no Estado de 7/8, 1.300 universidades privadas estão em funcionamento. O fato de ser uma universidade pública não impede que sejam cobradas mensalidades de seus estudantes. Um aluno dos cursos de Economia ou Administração paga cerca de US$ 1 mil por ano (há bolsas para os que não podem pagar, mas o sistema meritocrático é tradição desde a China imperial); há diferenças entre as anuidades cobradas, em função da demanda pelo curso, e não da qualidade da universidade.

Os cursos de MBA nas universidades de primeira linha têm preços internacionais: US$ 30 mil o curso (a título de comparação, os cursos de MBA da FIA custam em torno de US$ 10 mil). As universidades européias e americanas têm convênios com universidades chinesas para intercâmbio de professores e alunos e desenvolvimento de pesquisas em conjunto. Um bem-sucedido programa do renomado MIT, custeado por contribuições de ex-alunos das universidades chinesas, treina professores e desenvolve material didático.

Qual a importância da universidade chinesa no projeto de desenvolvimento do país? A educação sempre foi valorizada, do ensino básico (o filme Nenhum a Menos retrata a importância da escola no meio rural) ao ensino secundário e superior. Hoje, as escolas de Administração, Economia, assim como as de Engenharia assumem especial relevância em função de: Formação de quadros, tanto para as empresas chinesas como para as empresas multinacionais, e de empreendedores, abrindo negócios próprios - segundo a professora Luodan Xu, diretora do Lingan College, no início as empresas multinacionais iam buscar seus profissionais em Taiwan, Hong Kong, Malásia; hoje os recrutam nas universidades chinesas.

Desenvolvimento de conhecimento - segundo o depoimento do professor Qiuzhi Xue, diretor da Escola de Administração da Universidade de Fudan, eles têm procurado fazer pesquisas para desenvolvimento de modelos próprios de gestão. Analisam inclusive a experiência de economias emergentes, como a brasileira no processo de privatização, fusões e aquisições, para aprenderem a negociar melhor a questão tecnológica e os de modelos de gestão.

A relação com a China, do ponto de vista do Brasil, é complexa, diversificada, com pontos de concordância e divergência. Segundo o nosso embaixador Luiz Augusto de Castro Neves, equacionar a nossa balança comercial de exportação de produtos primários e importação de produtos com alto valor agregado não é tarefa fácil. As nossas empresas multinacionais, em diferentes segmentos, como a E mbraer, a Embraco, a CVRD, estão mostrando especial competência na gestão da cadeia produtiva, das operações, na gestão financeira e de pessoas; a questão tecnológica, a pirataria, assusta, mas estão aprendendo a jogar muito bem. Ao reencontrar ex-alunos nossos ocupando posições nas empresas na China, enfrentando com disposição e competências esse cenário, debatendo com os nossos alunos atuais seus desafios, senti o orgulho do professor que ensina, que aprende, que analisa, que critica. Muito temos o que ensinar e aprender, na busca de um desenvolvimento mais sustentável, de melhores condições de trabalho e ambientais, de relações de trabalho mais justas, mas este deve ser um jogo de ganha-ganha, e não de soma zero. Retomando a questão da universidade pública no Brasil, reitero uma vez mais a necessidade de revermos o seu modelo de gestão e financiamento. Para que a sua missão de geração de conhecimentos, formação de pessoas e extensão de serviços à sociedade se concretize, o modelo de financiamento deste projeto deve contar não só com recursos do Estado, mas também de doações e da cobrança de serviços e de cursos de especialização. Isto não torna a USP, assim como as universidades chinesas, menos pública.