Título: Palmas que ele merece
Autor: Gaudêncio Torquato
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/08/2005, Espaço Aberto, p. A2

Pergunta recorrente em todos os espaços: Lula tem condições de se reeleger? Pelo menos quatro condições se impõem para que alcance essa meta: sair limpo do mar de lama aberto pelo PT; fazer o milagre da multiplicação dos pães nos 13 meses que lhe restam; recompor a base política e reconquistar as classes médias; e adquirir apetência para governar. Mas há um porém: certas condições escapam a seu controle. Vejamos. Este segundo semestre será embalado pelo rufar de tambores das três CPIs em curso. O esforço dos presidentes das Casas congressuais não será suficiente para o encaminhamento de uma agenda positiva. Aspectos pontuais, como a questão do desarmamento, serão nuvens passageiras. Um clima pesado permanecerá no ar, misturando expectativas e interrogações. A perspectiva de cassação de parlamentares, em quantidade aceita pelos partidos, algo entre 15 e 20, não criará catarse de proporções suficientes para amansar a indignação social. Sob os escombros do PT, prevê-se nos próximos meses a administração cozinhando modesto feijão com arroz, um presidente tentando agrupar rebanhos perdidos, partidos tontos à procura de um rumo e cidadãos distanciados da classe política.

A crise aprisiona a administração (economia à parte) e o sistema político como um todo. A suspeita paira no ar. Até as eleições não haverá tempo para a reengenharia de colagem dos cacos quebrados. Ao término das investigações haverá um esforço para arrumar a casa. O primeiro semestre de 2006 será dedicado à reaproximação com as bases, implicando menos expediente no Planalto e mais tempo nas planícies eleitorais. Ao PT, sobretudo, restará a tarefa de Fênix de renascer das cinzas. Talvez deva inspirar-se no conselho que o padre Joseph Lebret deu, em 1957, aos que gostariam de vê-lo tirar São Paulo do caos em que se encontrava. Coordenou a pesquisa feita pela Sagmacs sobre a cidade, mas se recusou a elaborar um plano para o futuro da metrópole. O argumento: seria mais fácil destruir São Paulo e construir outra capital sobre os destroços. Criar um outro PT, eis a alternativa de Tarso Genro. Aos partidos políticos, urge criar ou recriar um ideário, à luz das demandas sociais. O conceito de partidos que pegam tudo (catch-all parties, como os ingleses os chamam), vendendo-se nos subterrâneos da política, agoniza. Partidos de massa, símbolos dos carcomidos tempos da luta de classes, e que tanto inspiraram o PT, também desaparecem ante a afiada lança dos grupos organizados, que não mais esperam pelas recorrentes promessas da democracia representativa, como o combate ao poder invisível, a educação para a cidadania e a justiça para todos, que Bobbio tanto lembrava. Caso pretendam consertar o telhado esburacado, as siglas nacionais haverão de se reconstruir com a argamassa dos núcleos sociais, onde se abrigam classes médias, profissionais liberais, pequenos e médios empresários e comerciantes, defensores do meio ambiente, esferas étnicas, universo estudantil e minorias, entre outros.

Menos ideologia e mais pragmatismo - eis o receituário dos novos tempos. Por essa razão, a opção por matizes de esquerda, centro e direita - cromatismo que ainda encanta os olhos de alguns neo-ideólogos da era moderna - só terá sentido se estiver conectada a estratégias para atender, no curto, médio e longo prazos, às expectativas sociais. Nessa moldura, admite-se a discussão sobre o tamanho do Estado (privatização, estatização), programas sociais, calibre macroeconômico, relações com os organismos de financiamento e política exterior. E assim o socialismo revolucionário abre portas para novas composições da democracia-social e seus derivados, conceitos que passam a abrigar núcleos da sociedade organizada.

E Lula, como entra no figurino? Como um ator populista ensaiando a volta ao palco, depois de peça não elogiada pela crítica. O ator voltará a conquistar o coração da sociedade? As condições já foram postas. Este primeiro estágio mostra que o presidente não estava preparado para governar. Liderar um sindicato, fundar um partido, ganhar a Presidência, viajar pelo Brasil, abraçar o povo, recorrer a metáforas e à origem humilde não são qualidades suficientes para comandar um país. Ademais, Lula não gosta de governar. Gosta mesmo é de discursar. E, de tanto se exercitar, desenvolveu um amor-próprio tão forte que o mundo real é coisa menor. Voltaire conta a historinha do maltrapilho de Madri, sujeito bem moço, que pedia esmolas com grande empáfia.

Um transeunte lhe disse: 'Você não tem vergonha de exercer essa atividade, quando pode trabalhar?' E ele: 'Meu caro, peço-lhe esmola, e não conselhos.' Por amor a si mesmo, pedia esmola e não permitia que ninguém lhe sugerisse nada. Lula não admite isso. Diz que vai continuar viajando, freqüentando palanques e azucrinando as elites. Confia no estoque de carisma, tábua de salvação que serve (por enquanto) para afastálo da lama que escorre ao seu lado. Ficará imune aos respingos? Se não se livrar da arapuca em que o PT o colocou, Lula não ganhará festas na reta final. José Américo de Almeida, ministro de Getúlio, governador da Paraíba, autor de A Bagaceira (1928), proclamava: 'Paraibano não bate palmas no meio do governo. Só bate palmas no começo e no fim. No começo, de esperança. No fim, de pena.' No início, a esperança venceu o medo. Palmas para o presidente petista. Do meio para o fim, a esperança está indo embora. Que pena. Palmas muito sentidas. Ele merece.

Em tempo: o depoimento de Duda Mendonça e a entrevista do ex-deputado e presidente do PL, Valdemar Costa Neto, à revista Época reforçam as perspectivas sombrias contidas neste artigo. Bem como o pedido de desculpas do presidente à Nação não é suficiente para inocentá-lo.